Não é qualquer cidade do mundo que pode se gabar de ter, em pleno centro, um parque como o Campo de Santana, onde a História se mistura com árvores centenárias, com o paisagismo elegante e sofisticado do século XIX e com uma variedade de animais. Seus 155.200 m² abrigam esculturas, grutas e lagos, fontes francesas de ferro fundido, elevações gramadas e pequenas pontes, construídas com a única finalidade de oferecer aos visitantes um espaço para a contemplação das águas e dos seus habitantes, de peixes a irerês, passando por gansos e patos. À sombra das figueiras e dos baobás há bancos ideais para se descansar do tumulto da Saara, ali do lado, ou do movimento da Central, logo em frente.
Imagino o Campo de Santana numa cidade bem administrada, e vejo um parque onde se podem passar algumas horas despreocupadas, e onde os bancos convidam a uma pausa. Vejo pessoas usando tablets e smartphones, conversando, lendo o jornal do dia, namorando, fazendo um lanche ou, pura e simplesmente, observando o movimento.
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Como o Rio, infelizmente, está longe de ser uma cidade bem administrada, o meu exercício de imaginação é rudemente interrompido pela realidade. Anteontem, quando passei por lá no começo da tarde, havia um homem drogado e maltrapilho estirado na entrada principal, como uma espécie de aviso do que espera os visitantes daquele pequeno paraíso: um inferno autêntico, atravessado às pressas por quem precisa cortar caminho. Os bancos, que poderiam ser tão convidativos, estão quebrados, vazios ou ocupados por moradores de rua, pivetes, travestis, pequenos traficantes. Há uma cracolândia abertamente instalada numa das alamedas.* * *
Ao me ver fotografando, um dos funcionários me alerta, assustado:-- Toma cuidado. Aqui nesse pedaço mais movimentado a senhora ainda está bem, mas não vá para o lado do quartel dos bombeiros, ali é meio deserto.
-- É perigoso?
-- Não posso falar nada. Só estou dizendo, evite aquele lado.
Ele se afasta de mim rapidamente. A impressão que fica é que recebeu ordens dos superiores para não comentar os perigos do parque com os visitantes.
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Um pouco adiante, um rapaz está agachado, com uma Canon bem sofisticada, tentando encontrar o melhor angulo para uma foto em que gatos e cotias apareçam em primeiro plano. Está tão despreocupado que deixa a mochila solta, um pouco para trás. Nem preciso dizer: é um turista. Mora em Berlim, está passando uma temporada no Rio.-- Os jardins do Rio são muito bonitos. Passei um dia inteiro no Jardim Botânico, agora vim fazer umas fotos do Centro e descobri este parque cheio de gatos e desses outros bichos... É maravilhoso.
-- Cuidado. O Jardim Botânico é uma coisa, este parque aqui é outra. Não digo para você não fotografar, eu mesma estou fotografando, mas fica esperto, ou vão te levar tudo. A barra aqui é pesada.
Ele agradece. Um grupo de pivetes nos observa da sombra de umas árvores, a alguns metros dali. Tomamos, claro, a direção oposta. Mais tarde fiquei sabendo que, há poucos dias, uma turista sueca foi assaltada naquele exato ponto -- e, ainda por cima, jogada dentro do lago pelos bandidos. Não sei o que terá sido pior, se o assalto ou o banho naquelas águas fétidas.
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O Campo de Santana não está inteiramente abandonado. As águas estão imundas, é verdade, e exatamente em frente ao Souza Aguiar há um lixão nojento cheio de moscas, mas de modo geral o chão está varrido, e as plantas parecem felizes. Não custaria nada à prefeitura (ou custaria muito pouco) revitalizar o jardim e devolvê-lo à população. Do jeito que está, ele é uma prova gritante de má administração e de falta de amor pela cidade.* * *
Os gatos que encantaram o turista alemão e que parecem levar uma vida pacata por lá são, coitados, um dos grandes dramas do Campo. São alimentados e cuidados por voluntários, que tiram dinheiro do próprio bolso para comprar ração e remédios e para organizar feirinhas de adoção. Mas o que este grupo de abnegados faz é pouco mais do que enxugar gelo, já que cerca de vinte gatos são lá abandonados diariamente, entre eles muitas fêmeas grávidas ou com ninhadas recém-nascidas. Enquanto isso, os dois veterinários do posto da Sepda, que fica dentro do próprio campo, castram apenas cinco animais por semana.Na minúscula enfermaria que os voluntários conseguiram junto à administração não cabe mais um único bicho; por falta de gaiolas apropriadas e de espaço, muitos dos doentes ficam “internados” em caixas de transporte. É desesperador.
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A população de gatos do Campo de Santana é uma realidade que a prefeitura não pode ignorar. Não adianta fazer de conta que eles não existem, ou esperar que os voluntários resolvam sozinhos a situação. Os bichinhos poderiam ser um dos atrativos do parque, assim como as cotias e os patos, se não fossem tantos e não estivessem em condições tão precárias. Para isso precisam de abrigo, comida e tratamento veterinário. E precisam, urgentemente, de castração em quantidades significativas, para evitar a explosão populacional que se vê.* * *
Conheci o prefeito semana passada, na casa de um amigo. Mostrou-se simpático e solícito quando toquei na questão do Campo de Santana. Tomou notas no Blackberry e prometeu providências. Vou cobrar. Não é possível que este parque histórico e encantador, tesouro que pertence a todos nós, seja freqüentado apenas por mendigos, drogados e traficantes.* * *
Não se deixem enganar pela foto; é que o meu coração se recusa a registrar o Rio feio.(O Globo, Segundo Caderno, 8.6.2011)
Um comentário:
Prezada Cora, acompanho há algum tempo o que escreve sobre o Campo de Santana. Não é exatamente o meu enfoque, mas fica o convite: vou defender minha monografia de pós-graduação sobre o Campo. Sinta-se e a vontade se quiser/puder aparecer. Será na sala 4118, do bloco F da UERJ Maracanã. Abraços, Ivo Venerotti.
Dia 9/11/20110, quarta-feira, 14h.
Título: Persistência toponímica e políticas territoriais: o exemplo do Campo de Santana, na cidade do Rio de Janeiro.
Resumo: A toponímia pode revelar diversas políticas territoriais. Dito isto, um mesmo logradouro, inicialmente batizado em homenagem à Santa Ana – Campo de Santana, recebeu, em um período compreendido entre 1735 e 1889, diferentes denominações, como Campo da Aclamação, Campo da Honra, Praça da Aclamação e Praça da República. O objetivo deste artigo é revelar as práticas, usos e atores por trás desses topônimos, lançando luz sobre um trecho relevante na geografia da cidade do Rio de Janeiro, mas um tanto obscurecido pelos estudos em nossa área de atuação.
Orientador: Prof. Dr. João Baptista Ferreira de Mello
Banca examinadora: Prof. Dr. Miguel Angelo Campos Ribeiro, Profa. Dra. Susana Mara Miranda Pacheco, Profa. Ma. Melissa Anjos
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