19.11.04









Próxima parada: Porto Velho, Rondônia

"Vemos na paisagem do Pampa rio-grandense um pássaro chamado quero-quero, que é considerado a sentinela do Pampa. O quero-quero, diferentemente de outras aves, faz os seus ninhos no chão, vivendo a maior parte do tempo em contato com a terra e apegado ao lugar onde vive. A este lugar em que o quero-quero, outros bichos e o próprio ser humano costumam ficar, no linguajar gaúcho nós chamamos de "querência". Em português esta palavra se reporta ao verbo querer. A querência é um lugar que tem uma vontade, um querer originário, conforme a própria etimologia da palavra indica. Mas não é um querer isolado e separado do querer humano, dos animais e das plantas que ali vivem. O querer da querência requer o querer de tudo o que ali vive, de tudo o que pertence ao lugar, inclusive a paisagem. Ser apegado a um determinado lugar é ser aquerenciado. O processo de se apegar a um lugar se expressa com o verbo "aquerenciar". Ser aquerenciado significa também estar de bem com a vida, estar na posse da plenitude do sentido da vida. Na sabedoria camponesa aqui do sul do Brasil, da Argentina e do Uruguai, do gaúcho, a felicidade é o próprio sentido de pertencer a um lugar.

A querência é a intimidade com a natureza e com as coisas do local em que se vive. É ser parte das histórias das pessoas, dos animais e das plantas de um lugar. É ter a própria identidade pessoal, a própria história individual, inseparável de toda a teia destas histórias. É estar em casa no mundo. Por outro lado a pessoa que é infeliz, que não encontrou o seu lugar no mundo, que está de mal com a vida, é "desaquerenciada". A pessoa desaquerenciada não tem paradeiro fixo, vive inquieta, sempre à procura de um outro lugar, insatisfeita, angustiada, no estado de carência, de falta. Na perspectiva da sabedoria gaúcha, o problema ecológico é a Humanidade estar desaquerenciada da Mãe Terra, da Pachamama, de Gaia, a suprema morada do homem.

O Fórum Social Mundial é uma tentativa planetária de aquerenciar a Humanidade na Terra. Mas, para que isso aconteça, cada ser humano deve ser alerta e vigilante como o quero-quero, deve exercer a sua condição de cidadania planetária defendendo a Terra e a Humanidade em cada local onde vive. Cada cidadão do mundo pode se inspirar no exemplo da sentinela do Pampa: ao pressentir a aproximação de um perigo, o quero-quero dá o alarme, começa a gritar o canto que deu origem ao seu nome e a fazer investidas contra o intruso através de vôos rasantes".


Este é o começo da "Declaração de Porto Alegre pelo aquerenciamento planetário", do ecologista e filósofo Celso Marques, da Associação Gaúcha de Proteção Ambiental. A leitora Marlene Zornitta mandou o link e acertou em cheio: fiquei encantada de encontrar os passarinhos de que tanto gosto como símbolos de causa tão justa e nobre. Amar o planeta é mesmo a conseqüência mais ampla de amar o seu canto, a sua querência; o mundo começa no quintal da gente. O resto vem por acréscimo.

Leiam a íntegra do artigo, vocês vão gostar. Ele está disponível no site do Projeto Roessler, em querencia.notlong.com.

* * *

Um dia, quando eu ainda morava em Brasília, um amigo voltou da Amazônia trazendo fotos extraordinárias. Era o fotógrafo Marcos Santilli, que não vejo há tempos; mas ainda vejo, gravadas na memória, algumas das imagens que ele foi buscar na Madeira-Mamoré -- que eu, carioca ignorante, nem sabia que existia. Nos meus 25 anos, estava descobrindo o Brasil; saber daquela estrada de ferro morta, em Rondônia, foi uma experiência fascinante.

A duras penas -- ainda não havia internet! -- consegui desencavar algum material sobre aquele delírio do capitalismo equivocado; quando Márcio Souza escreveu ?Mad Maria?, o livro caiu como uma luva na minha imaginação, povoada por pedaços soltos de informação.

Resultado: cismei que queria porque queria ir lá, ver por mim mesma o que ainda havia para ver. Infelizmente, não consegui convencer nenhum dos meus editores da urgente necessidade disso; e, mãe de dois filhos pequenos, tampouco consegui convencer a família de que aquele era um bom lugar para as nossas férias.

Fiquei frustradíssima. Mas depois o mundo mudou, eu mudei e, já de volta ao Rio, a Madeira-Mamoré acabou muito longe, tanto geográfica quanto emocionalmente. Até que, há coisa de um ou dois meses, eu soube que a Globo estava produzindo uma minissérie baseada no livro do Márcio. Lá mesmo, em plena selva.

Caramba, pensei, preciso ver isso! É agora ou nunca.

De modo que, quando vocês estiverem lendo esta crônica, estarei em Rondônia, realizando o sonho de muitos e muitos anos. Na volta conto tudo, prometo -- até porque, maravilha das maravilhas, é exatamente para isso que eu vou.

(O Globo, Segundo Caderno, 19.11.2004)

Vocês já leram trechos desta coluna antes, aqui no blog. Ela foi enviada ao jornal no domingo de madrugada, com essas três fotos do casal de quero-queros do Cantagalo, porque eu não conseguia me decidir entre elas.

A foto que saiu publicada foi a primeira. Acho que a minha favorita é a dos passarinhos ao pôr-do-sol, mas este tipo de foto, que funciona bem no monitor, em geral sai horrível na impressão.

De qual vocês gostam mais?

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