20.10.04




Informação: caminho
certo para a depressão


Está muito difícil acompanhar o noticiário e ser feliz

Responda rápido: o que é mais deprimente, a reportagem do "Fantástico" sobre o Bolsa Família ou o evidente despreparo do ministro Patrus Ananias? A cidade da cocaína e da carnificina ou o estado da pouca vergonha a R$ 1? O PT querer pegar carona no desempenho da sua campeã enjeitada Luizianne ou achar perfeitamente normal aliar-se aos malufistas? A possibilidade de Bush afinal se eleger presidente ou o fato de que esta possibilidade existe?

Já pensei muito sobre tudo isso e, sinceramente, não consegui chegar a nenhuma conclusão. Tudo me parece igualmente imoral e malsão, tudo me é igualmente nojento. Ver aquelas pobres crianças miseráveis no interior do país foi de cortar o coração; ver aquele ministro patético tentando defender o indefensável foi de ferver o sangue.

A reportagem do "Independent" carregou nas tintas, mas não disse nada de novo; muito mais prejudicial à nossa imagem (e ao nosso amor-próprio) é, a meu ver, a eterna mania das autoridades "ofendidas" de enviarem cartas de protesto a governantes, produtores de desenhos animados e jornais estrangeiros. Este provincianismo crônico me dá vontade de ler o jornal escondida debaixo do sofá, de pura vergonha.

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No caso do PT, o problema é, essencialmente, filosófico. Não sou petista, nunca tive qualquer simpatia pelo PT, mas, até outro dia, era obrigada a concordar quando se dizia que ele era um partido diferente dos demais. Afinal, seguia uma linha ideológica bem definida e parecia avesso a fisiologismos. A sua atual desconstrução como conjunto de pessoas unidas por um ideal (e não pela sede mesquinha de poder que se constatou por todo o país) é tão humilhante para petistas quanto para não-petistas. Em última instância, ela prova aquilo que todos estávamos cansados de saber, mas tínhamos medo de confirmar: no Brasil não existe política, só politicagem.

Para alguém da minha geração, que levou a luta social a sério e que acreditava que a raiz de todos os males era a ditadura, é triste demais ver a que ponto chegamos. Alegremente irmanado a ACM, Sarney, Newton Cardoso, Roberto Jefferson e outros exemplares do pior entulho autoritário, o PT nos dá uma lição muito objetiva: tanto faz o caráter das pessoas, tanto faz o caráter dos partidos. Pelo poder vale tudo, pelos fins justificam-se os meios, quaisquer que sejam.

Mas então, para que partidos? Para que manter essa farsa hipócrita, essa encenação a bom mercado? Para que -- e com que moral -- continuar a falar em "esquerda" e em direita""?

Aliás: existe conceito mais antigo? Será que ainda dá para se definir o mundo em termos tão simplistas? O camarada Putin, por exemplo, é de esquerda ou de direita? E o pragmático (sem perder a dureza jamais) Hu Jintao? E o companheiro Fidel? E os antigos companheiros do companheiro, que mofam na cadeia por crimes de opinião, convenientemente esquecidos pelo mundo?

Na verdade, acho que "esquerda" e "direita" transformaram-se em termos puramente afetivos, sem qualquer relação com propostas ideológicas -- exatamente como os nossos "partidos" políticos. "Esquerda", em tese, é quem está com a gente e a gente acha bacana; "direita" são os outros. Tanto faz quem a gente seja, ou quem sejam os outros: a política brasileira inventou os pontos cardeais complacentes.

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De todas as razões perfeitamente válidas para depressão apresentadas pelo noticiário, a mais sinistra e perigosa é, claro, a possibilidade da eleição de Bush. Kerry está longe de ser uma figura simpática ou carismática; ele é apenas um pouco mais tolerável do que Bush e um pouco mais civilizado. É possível ouvir sua voz sem sentir ânsias de vômito, o que -- pelo menos do meu ponto de audição -- vai melhorar consideravelmente a qualidade dos noticiários da CNN e da BBC.

Tenho pesadelos quando penso num Bush legalmente eleito, livre para dar rédeas à paranóia do seu fundamentalismo cristão, solto para correr atrás do Irã ou de quem Dick Cheney considere interessante para os negócios. Mas tenho mais pesadelos ainda quando penso que, vença quem vencer, metade dos americanos está de acordo com a forma como o país vem sendo conduzido, e vai continuar se lixando para o resto do mundo.

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Para não dizer que não falei de flores, termino com um ponto de luz: ouçam "Canção transparente", o maravilhoso CD da Olívia Hime, lançado pela Biscoito Fino! Gostoso, inteligente, bonito de doer -- um bálsamo contra a baixaria do cotidiano, antídoto certo para a falta de delicadeza que nos cerca.


(O Globo, Segundo caderno, 20.10.2004)

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