9.1.03



Hoje, no GLOBO...

...a minha coluna nova! Só não reparem a foto, pelamordedeus, que está horrível. Quando eu voltar vou pedir pro pessoal trocar por uma melhorzinha.

Traição a 2.400kbps, ou
O triunfo das livrarias



Nem sempre o que parece ser um processo de extinção acaba com uma espécie. Ainda bem!

Não me lembro mais quando comprei o primeiro livro on-line, mas lembro, até hoje, da mistura de sentimentos com que teclei o enter daquela compra. Isso foi, naturalmente, antes da web e do mouse (sim, meninos, houve esse tempo!) e a gente chegava à falecida books.com através de um sistema de acesso chamado telnet; mas não, não se preocupem, não vou explicar como isso funcionava. Esta coluna que estréia hoje é a minha coluna sem tomada, uma espécie de Cora Rónai unplugged; a tecnologia continua onde sempre esteve, no Informática etc. Vocês sabem, né? Às segundas-feiras, neste mesmo jornal? Aquele caderninho lindo?

Então. Como eu ia dizendo, as impressões daquela primeira compra foram tão marcantes que até hoje vivem em mim, ainda que eu tenha esquecido quantos e quais livros comprei na ocasião. De um lado, o assombro com a internet e com a vastidão do mundo de livros (e de dívidas em moeda forte) que se abria diante de mim; de outro, mais pungente, a sensação de estar traindo dona Vanna Piraccini, a minha querida livreira da Leonardo Da Vinci, onde, até aquele momento, sempre comprara os livros importados.

Eu pressentia que estava entrando por um caminho sem volta, e não conseguia deixar de pensar na horrível ingratidão que cometia, em parte por comodismo, em parte por economia, mas muito pelo frisson daquele ato ainda mágico de conjurar um livro do além através de meia dúzia de comandos e um simples cartão de crédito.

A minha relação com a Leonardo Da Vinci era, claro, uma relação especial. Dona Vanna era amiga de meus pais e, quando eu era adolescente, muitas vezes aceitou encomendas minhas que sabia que eu jamais poderia pagar - livros que eu levava para casa, um de cada vez, com o compromisso solene de ler sem quebrar a lombada. Assim, por exemplo, li toda a correspondência entre Vincent van Gogh e seu irmão Theo, nos quatro volumes de uma edição francesa que custava o equivalente a uns dois meses do que eu ganhava. Se alguém quis comprar aquela coleção enquanto eu estava com um dos volumes, não sei; mas sei que não fui a única protegida da dona Vanna. Tempos depois, quando já ganhava o suficiente para poder gastar tudo em livros, andei atrás de uma coletânea de discursos de Churchill, que havia visto por ali.

- Esquece este livro - disse dona Vanna. - Ele está sendo lido.

Ah, que bom, então outras pessoas que conseguiam ler sem quebrar a lombada continuavam a tradição?

- Imagina, você acha que eu sou uma biblioteca?! Não, este menino vem aqui toda tarde, senta num canto, lê horas a fio e, antes de ir embora, esconde o livro numa estante diferente. Só põe de volta no lugar certo quando acaba - e este ele começou a ler agora. Tem quase mil páginas. Volta daqui a dois meses.

Que espécie de ser sem entranhas seria capaz de comprar livros on-line tendo uma livreira como a dona Vanna? Ou como a Dalva Gasparian, da Argumento, que me avisava quando chegavam as caixas da Penguin, para que eu pudesse escolher antes dos outros? Se todos se deixassem seduzir pelas facilidades do comércio eletrônico, o que seria das livrarias? E - horror dos horrores - o que seria do mundo sem as livrarias?!

Para mim, essa não era uma questão meramente retórica. Era um problema familiar, pessoal, íntimo. Meu avô, que não cheguei a conhecer, tinha uma livraria em Budapeste. Cresci à sombra desta casa desaparecida, tão viva na memória de meu pai que até hoje existe na minha imaginação, com suas altas estantes envidraçadas, suas pequenas edições tão bem cuidadas, sua papelaria com uma espécie diferente de maravilha escondida em cada gaveta: cromos ingleses, carnês de baile, papéis de carta, mata-borrões.

Uma loja como a Amazon (ou como as suas equivalentes de pedra e cal, as onipresentes megastores) é, sejamos francos, um simples depósito de livros, um entreposto cultural que, por eficiente que seja, não merece o nome de livraria. Uma livraria é mais do que um monte de livros juntos: é um cardume de idéias, um ponto de encontro, um ser vivo como outro qualquer, com suas idiossincrasias, seu charme, seu cheiro.

Uma livraria é, sobretudo, um discreto monumento à civilização, um local onde podemos nos certificar, permanentemente, de que, apesar dos pesares, temos feito algum progresso como espécie. Coisa que, olhando assim pela televisão, ninguém diz.

Isso talvez explique as nossas surpreendentes livrarias, e a nítida mudança da vida intelectual carioca dos botecos para os cafés com livros que vêm, ultimamente, brotando feito cogumelos. É possível que, na cidade cada vez mais violenta e insegura, precisemos do conforto dessas ilhas de convivência cúmplice e gentil entre estranhos.

É bom para a alma passear entre as estantes, devagar, observando outras pessoas que fazem a mesma coisa: bípedes calmos flutuando numa bolha de cordial e educada civilidade, felizes por constatarem que ainda há espaço para uma certa área cinzenta da anatomia humana que não se retoca com lipo ou com silicone.

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