10.1.03









Expresso de Shangai

Desculpem o sumiço! Quinta-feira foi um dia puxadíssimo, com apresentações, palestras e entrevistas -- e uma fugida rápida prum mercadão aqui perto do hotel, onde fomos comprar as tradicionais lembrancinhas de viagem, que ninguém é de ferro. Para poder passar a sexta na rua, sem preocupações, resolvi escrever logo a matéria de segunda do Info etc., que só terminei às cinco da manhã; sendo que a gente saía quase em seguida, às 8h30 para um tour pela cidade. Não é só para o blog que está faltando tempo...

Enfim, tudo isso se resume em duas palavras básicas: tou morta! A versão integral, porém, é bem mais complexa do que este resumo. Ainda preciso arrumar as idéias e os sentimentos, ontem vi coisas demais, mas para começar aqui vão alguns pontos:

1) Continuo sem acesso ao blog, e descobri por quê. É que o governo da China bloqueia o acesso a sites incômodos, e o Blogspot é um deles. Em resumo, internauta chinês pode até ter blog (o acesso ao Blogger está livre) mas não pode ler blogs, pelo menos não aqueles pendurados nos hospedeiros óbvios;

2) Estou tendo acesso aos comentários através do Yaccs, que acesso diretamente, portanto estamos em contato. Meio arrevezado, já que nem sempre sei qual comentário se refere a quê, mas mesmo assim gostoso e -- sim, a palavra é essa -- gratificante para mim: fiquei muito contente em saber que vocês gostaram da coluna do Segundo Caderno! Eu estava (e ainda estou) meio apreensiva, o equilíbrio é sempre delicado até a gente descobrir o rumo certo num espaço novo.

Também fiquei muito feliz em saber que as fotos agradaram. Acabo de chegar da sala de imprensa, onde passei a noite subindo um outro lote.

3) Acho que posso dizer, sem exagero, que ontem passei por um dos dias mais perturbadores da minha vida -- um dia que não acabou à meia-noite, e com o qual vou ficar me debatendo ainda por um bom tempo.

A day in the life

Nosso tour foi vendido pela agência como um mergulho na vida cotidiana chinesa. Iríamos a um bairro residencial, visitaríamos uma escola, um centro comunitário e um hospital, daríamos um passeio pelas redondezas e terminaríamos a manhã em casas de voluntários que faturam um extra abrindo seus lares a visitantes e oferecendo-lhes refeições semelhantes às que, em tese, fazem todos os dias. Nossa guia, uma moça simpática de uns 25, 30 anos, falava um inglês excepcionalmente bom, e tudo, com exceção do frio desgraçado, parecia perfeito.

Saímos do centro de Shangai e fomos para uma região descrita pela guia como um típico bairro de trabalhadores. Primeira parada: o jardim de infância, onde as crianças que nos esperavam na porta nos pegaram pela mão e nos levaram para uma sala de aula, onde apresentaram numeritos de canto e dança. A escola é ampla, limpa, bem-equipada e alegre, e as criancinhas, lindas como todas as crianças chinesas, estavam bem cuidadas, bem alimentadas e bem vestidas. Uma perfeição. E típica, segundo a guia:

-- Todas as crianças chinesas freqüentam escolas assim. Vocês viram como elas estão alegres!

Nós brasileiros e os colegas indianos ficamos indignados.

Escola típica, aquela?! Quem eles acham que estão enganando?! É possível que um americano, um sueco ou um norueguês acreditem nesse papo, mas nós sabemos o que é uma escola típica nos nossos países, que, apesar das óbvias diferenças culturais, têm lá a sua semelhança econômica. Nós lemos jornais e nós fizemos o dever de casa antes de vir para cá; nós já vimos fotos de meninas chinesas abandonadas em orfanatos miseráveis, atiradas nas ruas, entregues para adoção. Eu até conheço uma dessas meninas, Rose, filha do meu colega John Lippman, do Wall Street Journal.

Além disso, tanto os indianos quanto eu já havíamos chegado sozinhos ao outro lado do rio, àquele bairro que fotografei no primeiro dia, em que vivem pessoas privilegiadas por terem casa, calefação e comida bem aqui na cidade -- mas que, vocês viram, está longe de ser um lugar idílico onde existiriam escolas assim para todas as crianças.

Nos sentimos traídos pela guia, que nos tinha parecido tão sincera e simpática, e ficamos imaginando que espécie de pistolão um chinês não precisa ter para conseguir matricular o filho lá. Ficamos imaginando também que opinião terão dos estrangeiros que os visitam, para achar que podem mentir com essa desfaçatez. Nós sempre ouvimos falar em propaganda oficial e em guias conduzindo visitantes para lugares maquiados, mas nunca pensamos que a coisa fosse tão primitiva.

Na próxima parada, o tal centro comunitário, fomos levados para um prédio estalando de novo, com academia de ginástica, enfermaria, sala de lazer... enfim, todos os confortos da civilização, desta vez ao alcance dos velhinhos, que nos contaram como complementam a sua aposentadoria (integral, fizeram questão de frisar) vendendo os seus trabalhos manuais, por acaso ali expostos: leques, pinturas, esculturinhas de jade. Rigorosamente iguais aos que vimos no mercadão, só que três vezes mais caros.

Alguns incautos compraram. Eu só não estava subindo de costas pelas paredes porque o cheiro da tinta estava me matando de alergia, mas a Luciana Vedovato, da Motorola, o Renato Cruz, do Estadão, e os indianos todos estavam prestes a começar um motim, levado a efeito na próxima parada, o hospital. Aí nos recusamos a continuar ouvindo aquela xaropada, e preferimos bater perna pra cá e pra lá, enquanto os outros colegas se submetiam a essa estranha forma de tortura chinesa.

Antes de rumar para os típicos lares chineses e desfrutarmos as típicas refeições com os típicos trabalhadores de Shangai, fizemos uma parada de dez minutos no mercado local. Nessa quem rodou a baiana fui eu. Como, dez minutos no mercado?! Com tantas fotos para fazer?! No way! De lá eu ia embora por conta própria, nem que fosse a pé, mas é num mercado que a gente vê, de fato, como o povo vive, o que come, do que gosta.

Eu não ia passar correndo pela vida real para depois perder outra hora do meu precioso tempo numa ficção qualquer.

Luciana e Renato, ótimos companheiros de viagem, ficaram também, não sei até que ponto por receio de me deixar sozinha naquele canto perdido do mundo. De qualquer forma, fiquei muito grata a eles; um pesadelo dividido por três é mais fácil de encarar. Acontece que ontem nós descobrimos que num mercado também se pode ver a alma de um povo -- e o que nós vimos foi, para dizer pouco, aterrorizante.

Imaginem a cena: um mercado cheio das coisas que habitualmente se vendem nos mercados, frutas, legumes, cereais. Uma imundície inacreditável por todos os lados, uma camada de sujeira derrapante e fedorenta no chão, bicicletas e motos passando entre as pessoas por corredores estreitos até para as pessoas -- e, de repente, a peixaria.

Eu, que fiquei um pouco para trás fotografando, ouvi um grito da Luciana. Corri em tempo de ver, num balcão, um peixe grande que acabara de ser cortado em dois, vivo, sangrando e se debatendo. Fiquei paralisada olhando para a cara daquele bicho que saltava sem a parte de baixo do corpo, e que levou uma eternidade para morrer.

Mas não havia sido essa a causa do grito da Lu. Quando ela me encontrou, depois de ouvir o meu grito (claro, eu nem percebi, mas gritei também), o peixe já estava quase morto. O que ela tinha visto havia sido igualmente horripilante: uma vendedora batendo uma enguia também viva no chão, para possivelmente esmigalhá-la por dentro, e depois cortando a sua cabeça fora com uma tesoura. As pessoas -- digo, os chineses -- que estavam em volta acharam o nosso pavor muito engraçado.

Seguimos em frente. Todos os animais -- sapos, cobras, enguias, peixes, caranguejos, tartarugas -- são mantidos vivos em pequenas bacias. A água dos peixes e enguias tem tubos de oxigênio, como aqueles que se usam nos aquários, para que eles não morram. As tartarugas, empilhadas umas em cima das outras, tentam escapar. Não consegui deixar de dar outro grito quando vi uma que estava quase caindo da bacia. O vendedor, mais um que se divertiu com a minha reação, a pegou pelo pescoço. Não tive coragem de ver o que fez ou deixou de fazer.

Logo adiante, uma moça estava limpando uma batelada de cobras. Cortava-lhes as cabeças, depois as abria ao comprido e tirava a espinha e as entranhas. Fazia isso de forma tão automática que nem olhava para elas. Fiquei pensando quantos milhares já não teria matado para atingir tal nível de perfeição.

Fugimos da peixaria, mas caímos num lugar pior. Do outro lado estavam as aves. Vi um cisne com as asas quebradas para trás, "amarradas" num nó atrás do pescoço, sendo pesado num gancho que o suspendia por este nó das asas. Vi centenas de patos uns em cima dos outros, alguns com as patas partidas, todos com as asas quebradas da mesma forma, e nunca mais vou conseguir me esquecer do olhar dessas aves, eu que achava que aves não têm expressão.

Nunca mais vou conseguir me esquecer, também, do olhar dos chineses, que riam para nós tentando, acho, ser simpáticos, e que se mostravam encantados com a câmera digital.

Nunca na vida vi um descaso tão generalizado com o sofrimento, uma tal banalização da crueldade. Pode-se argumentar que a forma como criamos os frangos nas nossas granjas não é mais "humana" (que palavra mais inapropriada!), ou que um matadouro não é muito diferente disso; não sei.

Ainda não assimilei a experiência inteiramente, mas já estive em mercados em todos os cantos do mundo, de Seattle a Istambul, passando por Belém, Santiago e meia Europa e, repito, nunca vi nada sequer remotamente parecido.

Mais tarde, passando por umas lojas, vimos uma gatinha tricolor fechada numa jaula minúscula. Era o animal de "estimação" da casa. Fui fazer um carinho e ela miou desesperadamente para mim, como se eu pudesse representar uma forma qualquer de salvação.

Fiquei no auge da depressão.

O Renato disse:

-- O que é que você queria? Ela está sendo tratada como um membro da família.

P.S. Mais uma vez, as fotos estão sem legenda, e não foram selecionadas ou tratadas, com exceção de um ou outro corte aqui e ali. O que está nos álbuns corresponde, mais ou menos, a uma cópia contato. Dêem um desconto. Quem quiser ver as fotos em alta resolução, MUITO grandes (leia-se leeentas) pode ir por esses links aqui para o tour oficial, o mercado e o passeio dos brasileiros insurrectos.

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