30.6.05




Tu te lembras da casinha pequenina?

Há um Brasil maior do que tudo isso que aí está;
os assassinos, porém, andam soltos entre nós



Uma paisagem verde, um pé de caqui vermelho de frutas, uma vaca pastando, dois homens conversando numa varanda ao entardecer -- e a casa, digna, bonita, estalando de limpa. Eu nunca tinha ouvido falar em Xanxerê, no interior de Santa Catarina, até minha filha voltar de lá trazendo essas imagens evocativas numa pequena câmera digital. Passei muito tempo olhando para a casinha tão brasileira, admirando cada detalhe, feliz em encontrar numa foto tão singela o antídoto emocional para a sujeirada que Brasília nos despeja aos baldes sobre a cabeça, dia após dia. Publiquei as fotos no blog.

* * *

"Cora, eu nasci numa casinha exatamente assim, lá no Paraná -- escreveu Lúcia Latorre. -- Minha mãe mora até hoje numa casinha exatamente igual. Também lá no Paraná. A foto da varanda com os dois homens sentados lembra meu pai que era ferreiro e meu irmão, igualmente ferreiro de profissão. E eu sempre tive vergonha de morar em casa de madeira, meu sonho era acordar e ver uma parede de tijolo. O chão da casa que aparece lustroso e limpinho, é porque desde cedo a gente aprendia a encerar o chão. A cera era feita com tablete Santo Antonio derretido com meio litro de gasolina, que a gente esquentava no fogão a lenha.

Vendo essas fotos eu chorei. Porque hoje tenho uma casa de tijolo como eu queria, grande, bonita, mas não sou feliz como era naquele tempo. Eu poderia até ser feliz hoje, mas por que será que não sou?

Venho aqui todos os dias, mas nunca escrevo porque tenho vergonha ou receio de cometer erros de português. Mas obrigada por devolver meu passado. Hoje mesmo liguei para minha mãe e vou visitá-la semana que vem."

Alexandre Ribondi, o amigo querido de Brasília que escreve tão bem, respondeu:

"Lúcia, lá na serra do Espírito Santo, de onde eu sou, por causa dos imigrantes italianos, alemães e poloneses, tem muita casa assim. E o que ficou grudado na minha memória é o chão eternamente brilhante. Quando minha mãe ia passar o pano, eu me sentava nele e, fazendo peso para lustrar bem, ainda brincava de deslizar pela casa, desviando-me das quinas dos móveis.

Em dia de encerar também, as cortinas das portas internas eram amarradas para ficarem suspensas. Um dia, meu irmão do meio tentou me enforcar no nó, o que provocou um alvoroço igual a galinheiro invadido por gavião.

E lembra das roupas, como eram branquinhas, lavadas com boneca de anil? E na sua casa tinha lingüiça pendurada num pau em cima do fogão à lenha para defumar? Tinha horta onde, quando a mãe mandava ir pegar alface, a mão da gente congelava com o frio de uns dois graus? Eu me lembro do cheiro de broa, de mandioca cozida, de pão preto com mel em cima, de polenta.

Nem se trata de ser mais ou menos feliz que hoje ou algum dia por vir. É que era bonito demais. E, olha, fica pra sempre."

Foi um fim-de-semana nostálgico, com amigos que não se conhecem trocando lembranças de infância, histórias de um país que, apesar de tudo, insiste e resiste por si mesmo, alheio a mensalões, a tesoureiros milionários e a deputados corrompidos até o osso; um país onde ser chamado de ladrão ainda é ofensa, onde honra não é figura de retórica e onde o chão brilha porque é assim que tem que ser. Como disse o Cesar Valente, lá de Florianópolis:

"O Brasil, a gente sabe, mas esquece de vez em quando, é maior e melhor que seus políticos e seus governantes."

* * *

Há dois anos, no dia 24 de julho de 2003, lamentei, aqui, a sorte de Gustavo Damasceno, morto ao volante de seu Uno Mille por um bando de cretinos que batiam pega na Vieira Souto em carrões importados. Como era de se prever, nada aconteceu aos assassinos do rapaz correto, trabalhador. Depois de destruir uma família, armaram-se de bons advogados e hoje simplesmente não se fala mais neles, assim como em breve não se falará mais neste Ioannis Amora Papareskos, o troglodita que já está de volta às ruas, amparado pela justiça dos ricos.

Infelizmente, não há casinha em Xanxerê que baste para a gente engolir este outro Brasil, que perdeu por completo a noção do que é certo e do que é errado.

Para a desembargadora Rosita de Oliveira Neto, matar um senhor que estava calmamente aproveitando a manhã não parece ser razão suficiente para manter alguém atrás das grades; afinal, passado o porre monumental do uísque, das quatro vodcas e das sete cervejas, o assassino de Cláudio Mazzei Moniz é um ser humano como outro qualquer.

Suzanne Richthofen, aquela flor dos Jardins, também é: seu advogado acha um absurdo manter encarcerada uma pessoa de bons antecedentes só porque matou a mãe e o pai. Como ela é loura, fez escova progressiva e tem uma conta bancária de último tipo, o STJ concordou com ele.

Grande, grande suspiro. A gente faz o que pode para amar este país, mas às vezes, sinceramente, fica difícil: não há reserva de ternura que consiga sobreviver a tanta safadeza.

(O Globo, Segundo Caderno, 30.6.2005)