23.6.05



Atentados contra a Criação

Os podres da política talvez passem, mas a vida
demora bem mais a se refazer


Até outro dia, "Purificar o Subaé" era, para mim, apenas uma canção bonita de Caetano Veloso. Uma canção forte, que fala ao coração de quem preza o meio-ambiente, mas, ainda assim, solta no espaço, como tantas outras que denunciam atrocidades que nos revoltam -- lá longe. Não mais. No último fim-de-semana estive em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, e conheci este pobre Subaé, que corta, com suas águas negras, a paisagem de sonho.

O rio foi assassinado por empresas produtoras de óxidos de chumbo que, ao longo de 33 anos, faturaram US$ 450 milhões às custas da saúde e da beleza de uma região paradisíaca. A última empresa foi fechada em 1993, mas a essa altura, a quantidade acumulada de lixo tóxico ultrapassava 500 milhões de toneladas, e a contaminação se espalhara por toda a parte.

Hoje ouço a gravação inigualável de Maria Bethânia em "Brasileirinho", penso naquelas águas tristes e fico com o coração apertado; mal imagino a revolta que não atravessa a alma de quem conheceu um Subaé límpido e cheio de vida, vendido aos malditos por trinta dinheiros.

* * *

Santo Amaro já foi evidentemente rica e elegante. A prosperidade deixou sua marca nas duas lindas igrejas, na praça bonita, nos detalhes caprichados das casas antigas.

Na esteira do envenenamento do Subaé, veio o inevitável declínio econômico. A área empobreceu econômica e esteticamente; as velhas casas cheias de personalidade deram lugar àqueles caixotes sem estilo que, infelizmente, tanta gente pelo Brasil afora ainda interpreta como "arquitetura moderna".

Há um bom estudo sobre o caso em subae.notlong.com.

Apesar disso, Santo Amaro continua adorável, hospitaleira e gentil, com seu ritmo atemporal de interior, sua profusão de árvores frutíferas e seu ar de festa que, desconfio, seja mais permanente do que as bandeirinhas juninas que saudam os visitantes.

As maldades que lhe fizeram a tornaram frágil mas, coitadinha, também mais querida.

* * *

O Jockey Club, como todo mundo sabe, é um dos lugares mais chiques do Rio. Situado num ponto privilegiado da Gávea, tem uma arquitetura impecável, uma vista extraordinária, uma programação das mais variadas -- e uma diretoria sem princípios e sem coração, que há anos luta para acabar com os gatos que lá são abandonados.

Se não fosse por Ana Yates, raro exemplo de cidadania e dignidade no lamaçal em que o país inteiro parece chafurdar, os pobres quadrupinhos já estariam extintos: como uma Erin Brockovich da causa felina, ela luta há anos, praticamente sozinha, contra todos os obstáculos que o poderio do Jockey põe em seu caminho. Já foi à prefeitura, à justiça, aos jornais; tudo em vão. Tenta, desesperadamente e por seus próprios meios, dar às criaturinhas que ainda lá sobrevivem um mínimo de conforto, mas, ultimamente, nem isso lhe permitem mais fazer.

Tenho certeza de que a maioria dos sócios do clube não sabe do que acontece às suas costas. Peço-lhes: leiam a carta que me foi enviada por Lilian Queiroz, outra abnegada defensora de bichos, e cobrem a vida e o sofrimento desses animaizinhos à diretoria. Não sejam coniventes com este crime!

"Recebi uma ligação desesperada da Ana Yates, contando que Lucinda, Rita e Rose, as voluntárias de Vila Isabel que ainda têm permissão para alimentar os gatinhos confinados, estiveram hoje no Jockey Club e voltaram arrasadas. No "gatil", mais uma vez, não havia uma vasilha com água, e nem vestígios dela. Os gatos estavam famintos. Alguns mutilados, provavelmente pelos maus tratos da captura, precisando urgentemente de tratamento veterinário. No casebre, o quadro era dantesco: filhotinhos presos em gaiolas sem água e sem ração, três gatos desesperados dentro de caixas de transporte, um gato trancado com cadeado num dos quartinhos, com toda certeza nas mesmas condições, ou seja, sem água ou ração. A este último não puderam alimentar ou dar água por não terem conseguido a chave do cadeado.

Rose se desesperou, gritou, discutiu e talvez seja proibida também de entrar lá novamente, como aconteceu com outras protetoras. Disse que não agüenta mais, nem tem condições emocionais para ver tanto sofrimento.

Gente, até quando isso vai ficar assim impune?! Tantas vidinhas já se foram, tanto sofrimento! E ainda estão querendo arquivar o processo contra o Jockey... Não sei mais a quem recorrer, é tristeza demais!"

Vale lembrar que esta é câmara de horrores que o secretário de Promoção e Defesa dos Animais, Victor Fasano, quer adotar para toda a cidade: no dia 19 de maio, ele declarou, em entrevista, que "no Jockey, os gatos estão agora sem doenças e bem-nutridos. Sem controle, eles não podem receber medicamento com regularidade".

É possível levá-lo a sério?!


(O Globo, Segundo Caderno, 23.6.2005)

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