2.6.05




Tempo de ratos II

Quando animais viram factóides


Há alguns anos, vocês se lembram, apareceram três capivaras pequenas na Lagoa Rodrigo de Freitas. Deixassem estar, que não faziam mal a ninguém; mas não. Nesta cidade, que provavelmente convive com mais bichos do que qualquer outra cidade do mundo do mesmo porte, há sempre alguém para perturbar animais, caçar, matar, trancar no zoológico. De modo que, pouco depois, lá estavam os bombeiros tentando capturá-las. A operação foi um retumbante fracasso. Uma desapareceu sem deixar vestígios; as outras deram um perdido nos bombeiros e fugiram, em direções opostas.

Até hoje há dúvidas se eram realmente duas, ou apenas uma, que ora estava aqui, ora ali. Minha impressão, reforçada por fotos que fiz ao longo do tempo, é que eram um macho menor e mais claro no Cantagalo, e uma fêmea maior e mais escura na altura do Vasco. O macho sumiu meses antes da fêmea aventurar-se pelo canal e dar o mau passo que a lançou ao estrelato na praia de Ipanema -- e ao seu posterior (e criminoso) abandono na Reduc.

Muitos mistérios cercam a saga da Capivara da Lagoa, e nem podia ser diferente. Em qualquer cidade razoavelmente civilizada, um ou dois bichos daquele tamanho, alçados à condição de atração turística, teriam despertado o interesse e os cuidados das autoridades; não no Rio, cidade abençoada com tantos animais, mas amaldiçoada com uma administração a quem eles só interessam como factóides.

Depois de ignorar a capivara enquanto estava viva e fazendo a alegria de quem passava pela Lagoa, depois de permanecer omissa durante a perseguição que lhe moveram os bombeiros durante um dia inteiro, e de não mexer uma palha para impedir que fosse solta em área famosa pela caça clandestina, a prefeitura resolveu "assumir" a capivara, enchendo a cidade de cartazes em que tinha o desplante de se promover às suas custas. "Venha ver a capivara, agora mais perto de você", dizia na propaganda enganosa, dando a entender que a tinha cuidadosamente transferido para o zoológico.

Este é um país rico em golpes políticos baixos, mas prefeitura cafetinando capivara falsa é, com certeza, um marco inédito de má fé.

* * *

O pior é que a capivara não foi a primeira vítima do descaso da prefeitura, nem será a última. É inconcebível que numa cidade onde aparecem aves das mais variadas, preguiças, tamanduás, jacarés, capivaras e toda a sorte de macacos, para não falar em ocasionais baleias encalhadas e pingüins desnorteados, não haja um mínimo de interesse das autoridades pelo que acontece com os bichos. Eles vivem e morrem conforme as circunstâncias, e conforme a boa vontade de indivíduos que se mobilizam a seu favor.

* * *

Se isso acontece com animais silvestres que dão manchete em jornal, como estranhar que a secretaria especialmente criada para defender animais de rua, que dificilmente são notícia, esteja empenhada no seu extermínio? O secretário Victor Fasano (sim, aquele mesmo) é criador de aves; de cães e gatos não entende nada, como deixou claro nas declarações que deu à imprensa. Tampouco entende de promoção e defesa de animais: basta ver a equipe que convocou para essa missão.

À frente dos trabalhos pôs a doutora Vera Cardoso de Melo, especialista em produção animal (bichos criados para virar alimento), e ex-diretora do CCZ de Campos. Nada tenho contra ela, exceto, naturalmente, o fato de que alguém que se especializou e se dedicou à matança de animais está longe de ter o perfil adequado para melhorar as condições dos bichos de rua.

Na verdade, durante um breve momento, até acreditei que, cansada ou arrependida de exterminar criaturas, a doutora Vera estivesse disposta a aliviar o seu karma; tivemos uma troca de correspondência cordial e civilizada mas, no fim, ficaram faltando muitas respostas -- e muitos gatos. Em menos de um mês, sumiram uns 90 no Jardim do Méier; a pequena colônia de 15 bichanos velhinhos do viaduto do Rio Sul foi exterminada; e a carrocinha atacou novamente na área do Jockey, onde alguns dos gatos que fugiam apavorados acabaram atropelados. A Sepda nega o morticínio, mas não diz o que é feito deles.

Sua atuação está sendo tão calamitosa que, talvez pela primeira vez na vida, ONGs, voluntários e protetores de animais estão de pleno acordo em relação a alguma coisa. Muitos já escreveram para a prefeitura, pedindo a extinção da secretaria; assim, talvez, os nossos bichos de rua tenham uma chance de sobreviver.

Os efeitos das novas diretrizes animais da prefeitura, aliás, já se fazem sentir. Na segunda passada, os alunos da Escola Municipal República Argentina, em Vila Isabel, ficaram sem merenda. O local está infestado de ratos, que invadiram a despensa, serviram-se à vontade e contaminaram tudo.


(O Globo, Segundo Caderno, 2.6.2005)

Nenhum comentário: