2.8.04



A vida depois da morte

Está na moda dizer que o Orkut é uma bobagem, um repositório de vaidades em que o que conta é ter muitos amigos e muitas estrelinhas, mas onde pouca ou nenhuma interação emotiva acontece entre as pessoas; que o Orkut seria apenas um desfilar de egos, uma geladeira de almas, que só se encontram, de verdade, nas mesas de botequim.

Pois a página Orkut do Fernando Villela, o Fervil, transformado em triste estatística na semana passada, ao ser morto durante uma tentativa de assalto, mostra o oposto disso — e dá o que pensar.

Por ter tido uma intensa vida online, Fervil deixou de presente para sua família e para seus amigos um espaço de encontro e de desabafo, um ponto para onde podemos conduzir a dor e perceber que nossa perplexidade é compartilhada. Deixou também muito material de reflexão para aqueles que, como ele, não se cansam de estudar, curtir e admirar a internet e a conectividade.

No Orkut e, em menor escala, no blog do Fervil, amigos, conhecidos e até desconhecidos, solidários na revolta, estão extravasando sentimentos que, no mundo “real”, apenas encontrariam eco nos breves instantes de uma missa ou, digamos, numa eventual passeata contra a falta de segurança no Rio; mas essas situações exigem uma presença física que a distância nem sempre permite. Eis que entra em cena a internet, desempenhando a função fundamental de reunir e amparar pessoas que compartilham a mesma tristeza e a mesma indignação.

Sei, por experiência própria, como é importante ter com quem dividir as perdas. Quando Paulo Francis morreu, eu estava longe do Brasil, longe de telefones viáveis e cercada por estrangeiros que não tinham a menor idéia de quem ele era. Gentis, eles tentaram me consolar da morte do amigo — mas a verdade é que só se encontra conforto entre quem divide a mesma dor. A angústia solitária que senti naqueles dias é, até hoje, uma das piores lembranças da minha vida.

* * *

Muita gente se esquece que, na internet, há gente em todas as pontas. A superfície da tela é fria, mas os sentimentos que nela se manifestam nem sempre o são. Na página Orkut do Fervil, amigos de todos os cantos têm expressado sentimentos semelhantes. Nos rastros da passagem dos que lá estiveram antes encontram a prova de que não estão sozinhos, e que outras pessoas espalhadas pela web entendem perfeitamente como se sentem. Isso faz bem.

Além dos que se manifestam, tenho certeza de que há muitos mais que apenas lêem o que os outros escrevem e que permanecem “calados”; como estou certa de que voltam repetidamente ao blog em que o último post foi escrito poucas horas antes da morte do Fervil apenas para estar lá, para ter mais um pequeno contato com o amigo desaparecido e com a sua lembrança.

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“Nunca experimentei antes a sensação de entrar no blogue de alguém que acabou de morrer”, observou o jornalista Cesar Valente na área de comentários do meu blog, sob um link que leva ao blog do Fervil . “É como entrar no quarto ou na casa de alguém recentemente falecido: as coisas estão ali, do jeito que foram deixadas. E no caso do Fervil (a quem não conhecia), o post sobre os planos de mergulhar, explorar novos mundos, organizar as prioridades, dá uma triste medida da nossa precária existência.”

A sensação que o Cesar descreve é mesmo estranha mas, naturalmente, será cada vez mais comum com o passar do tempo. Alguns blogs órfãos de seus criadores continuam vivos, atualizados por amigos ou familiares como memória e lembrança; outros permanecem congelados no ciberespaço, lembrando, ainda assim, que por ali passou uma vez uma pessoa, com seus sonhos, seus ideais e suas bobagens triviais de pessoa.

No Orkut, a experiência comunitária dilui o estranhamento e aumenta a sensação do encontro. Nos recados do Fervil há até comunicados sobre as missas e chamadas para a comunidade orkutiana “Fervil Vive”.

“Não conheci Fervil, mas estava conversando com um amigo no msn na hora que ele recebeu o telefonema com a notícia”, escreveu Luciana. “Na hora foi um choque, mas pior foi chegar aqui e ver a quantidade de amigos que ele tem. A quantidade de gente que está sofrendo desde que soube o que aconteceu. Para mim, esse caso foi indignação, revolta. Para os amigos e familiares, que o amam, é dor, muita dor. Não podemos deixar que isso seja mais um número nas estatísticas de violência! O que podemos fazer? Não sei. No momento, só podemos desabafar, e é isso que estou fazendo.”



(O Globo, Info etc., 2.8.04)

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