18.8.04









Capivara para inglês ver:
uma tarde na Lagoa


Macho reaparece e cumprimenta as visitas, mas
fêmea anda sumida, preocupando os fãs



Vi a sombra suspeita ainda da bicicleta: menos que uma sombra, um deslocamento de água, como se um grupo de círculos concêntricos, depois de adquirir vida própria, tivesse decidido passear pela Lagoa. A tarde estava linda. As folhinhas novas das amendoeiras brilhavam na contra-luz, enquanto os Dois Irmãos e a Pedra da Gávea iam perdendo o relevo e se fundindo no mesmo bloco de sombra. Minha idéia inicial era ir até a colônia de pesca, onde mora uma garça azul que há meses tento fotografar direito; mas aquela ondulação da água, tão familiar, me fez saltar da bicicleta rapidinho. Quando tirei a câmera da bolsa, a cabeça retangular, de orelhas pequeninas, já estava de fora. Um casal de ingleses, ao meu lado, se espantou: o que diabos era aquilo?!

Resisti à tentação de dizer que era o Monstro do Lago Ness gozando merecidas férias no Rio, e expliquei que era uma capivara. Capybara, na língua deles; mas era óbvio que não conseguiam ligar o nome à pessoa. Nunca tinham ouvido falar no bicho e, nem preciso dizer, jamais tinham tido o prazer de ser formalmente apresentados a um indivíduo da espécie. Quando a capivara saiu da água, gorda e lustrosa, ficaram empolgadíssimos.

-- Que lindo! É uma espécie de porco?

-- Não, é um roedor, o maior roedor do mundo -- respondi, cheia de orgulho. -- Comum em toda a América do Sul, mas encontrado sobretudo no Brasil, embora os uruguaios o chamem de carpincho e achem que é uma especialidade local.

-- Onde mais podemos vê-lo por aqui? -- perguntou o inglês.

-- Hummm... não sei, talvez no zoológico.

-- Ah, são nativas dessa lagoa?

-- Não, não exatamente.

Era uma longa história, mas uma longa história que adoro contar, ainda que em inglês. De modo que repeti mais uma vez a saga das capivaras da Lagoa, explicando, de quebra, que, a esta altura, as duas eram animais célebres, que não só já haviam saído em jornal, como estrelado um curta-metragem. Pois lá estávamos os três, embevecidos, fotografando e trocando impressões a respeito da nossa popstar quadrúpede, quando apareceu uma americana empurrando um carrinho de bebê. Ela deu um grito de alegria quando viu a capivara.

-- Por favor, será que vocês podem me dizer que bicho é esse?

-- Uma capivara! -- responderam os ingleses em uníssono, felizes com a cultura recém-adquirida. -- É um roedor. O maior roedor do mundo. Comum em toda a América do Sul...

-- Ahá! -- cortou a americana. -- Eu sabia! Vi centenas de capivaras no Pantanal, mas no outro dia, quando encontrei esta aqui pela primeira vez e contei para o meu marido, ele não acreditou. Disse que eu provavelmente estava confundido com outro animal, porque não existem capivaras urbanas.

Ato contínuo, pegou o celular e ligou para o marido descrente -- que, depois dessa, jamais vai duvidar de novo da existência de bichos exóticos em locais inesperados. Sobretudo se, à noite, assistiu ao Jornal Nacional, com algumas das cenas de baleia e arraias mais lindas dos últimos tempos.

A capivara não demonstrava nenhum constrangimento com a nossa presença, e nenhuma pressa de ir embora. Olhava para a gente com o característico olhar altaneiro das capivaras, comia capim e rolava na terra. Depois nos deu as costas, voltou para água e nadou, calma e elegantemente, até o Parque do Cantagalo. Fui seguindo o percurso da margem, e notei que alguns peixes saltaram da água à sua passagem. Eu nunca tinha reparado nisso antes.

O sol ia se pondo quando ela saiu da água novamente. Dessa vez, várias pessoas interromperam a caminhada para observá-la. Algumas, íntimas, conheciam seus hábitos em detalhes. Várias já encontraram também a fêmea, que é maior, mais escura e mora em frente ao Vasco mas, neste momento, existe certa inquietação em relação ao seu paradeiro, já que não é vista há algum tempo. Se alguém tiver notícias ou fotos recentes, por favor avise.

Quanto ao macho, esperou a noite cair para abandonar seu fã-clube. Brincou um pouco com um coco e deu uma corrida num bem-te-vi antes de mergulhar, silenciosamente. Quando os círculos concêntricos reapareceram na superfície da água, logo seguidos pela cabeça engraçada, ele ia longe, na direção dos prédios chiques da pedreira. Nós bípedes sorrimos uns para os outros, nos despedimos e tomamos o rumo de casa em estado de graça, felicíssimos com o encontro inesperado.

* * *


Enquanto isso, no Rio Grande do Sul, aquele estado elegante, culto e supostamente civilizado, os bichos acabam de ser vítimas de um golpe legislativo particularmente sinistro. Em nome da "liberdade de culto", o deputado Edson Portilho propôs -- e o governador Germano Rigotto aprovou -- uma ligeira alteração do Código Estadual de Proteção aos Animais; de forma que a lei, que antes proibia a crueldade contra os animais, agora permite, explicitamente, que os gaúchos os sacrifiquem à vontade em "cultos e liturgias das religiões de matriz africana".

Taí: numa hora dessas, tudo o que eu queria era um culto ou liturgia, de qualquer matriz, que exigisse o sacrifício ritual de políticos.


(O Globo, Segundo Caderno, 19.8.04)

Um comentário:

gifu disse...

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