Fale com o motorista apenas o essencial
Mas -- o que não é essencial entre
as quatro portas de um taxi carioca?
Não, apesar daquele dia lindo lá fora, as coisas não estavam indo nada bem. De manhã, a namorada havia telefonado e dito que estava de mudança para Curitiba, transferida pela empresa.
— Profissionalmente é bom para ela, com certeza. Mas como é que eu fico? Tudo bem, não é como se ela estivesse indo para outro país, mas é muito chato. Quando a gente namora, quer a pessoa ali, pertinho.
Concordei com ele. Namorar à distância é um horror. E se ele fosse junto?
— Ah, é muito difícil! Primeiro porque eu adoro o Rio, nasci aqui, cresci aqui, não consigo me imaginar vivendo em outro lugar. Depois porque a gente está namorando há pouco tempo, entende? Se fosse uma relação mais antiga, mais estabilizada... Mas se eu for para Curitiba agora vira casamento. Eu me divorciei há dois anos, não quero casar de novo, passar por tudo de novo, quero dar mais um tempo. O pior é que eu gosto muito dela, muito mesmo. Tenho a sensação de que as coisas poderiam dar certo entre nós dois, mas não assim, no grito... Sinceramente, estou tão angustiado com esta situação que até liguei para a minha terapeuta. Parei com a terapia no ano passado, mas hoje tive que ligar. Não estou sabendo lidar com isso direito, não mesmo... Olha, estou achando este trânsito ruim demais, a senhora não prefere pegar o Santa Bárbara?
Já tive conversas de todos os tipos com motoristas de táxi, mas esta foi a primeira vez que um deles veio discutindo a terapia comigo pelo túnel.
* * *
Andar de táxi no Rio é uma aventura sociológica surpreendente. A crise empurrou para a praça uma quantidade de profissionais liberais que, há poucos anos, estavam empregados em grandes empresas ou tinham seus próprios negócios; não sei se alguém já fez a estatística, mas acho que o Rio deve ser, hoje, uma das cidades com maior percentagem de taxistas com nível superior no mundo. Esses profissionais educados, superqualificados para a atual profissão, estão tirando o lugar daqueles motoristas mal-intencionados que, ainda outro dia, eram o terror dos passageiros. Eles sobrevivem, é claro, mas refugiaram-se nas zonas menos favorecidas, em algumas áreas de risco e, principalmente, no imaginário popular; a verdade é que, em termos de táxi, somos, atualmente, uma das cidades mais civilizadas do planeta. E, certamente, a que tem a melhor relação custo-benefício.* * *
Assim que começou a guerra do Iraque peguei um (bom) motorista das antigas. Um senhor paraibano, simpático, que mantinha o sotaque nordestino apesar de ter vindo para o Rio há mais de 30 anos, e que me explicou que Saddam Hussein, àquela altura ainda fugitivo, era, mal comparando, uma espécie de Lampião das Arábias.— Os meus avós eram muito pobres, viviam numa rocinha no sertão — disse ele. — Um dia, Lampião apareceu com uns cabras. A senhora sabe o que é um cabra?
— Sei, é claro.
— Ah, isso é porque a senhora é jornalista. Aqui no Rio, muita gente não sabe, não. Mas então, como eu ia dizendo, Lampião chegou, cumprimentou o pessoal de casa e perguntou se podia almoçar. Meus avós não tinham comida que desse nem para eles, mas quem é que ia dizer a Lampião que não podia almoçar? Assim minha avó matou a última galinha, que guardava pelos ovos, preparou e serviu com farinha. Quando perguntou se estava bom, Lampião disse que sim, que estava muito bom; mas um dos cabras disse que ficaria melhor com sal. Não é que a minha avó, no nervoso da hora, tinha se esquecido de salgar a galinha? Na mesma hora Lampião chamou um menino que estava por lá, mandou na venda buscar um litro de sal e fez o cabra que reclamou comer o litro inteiro, sem água nem nada, para reparar a desfeita. Dizem que ele morreu disso, mas não sei se é verdade, a senhora sabe como é: as pessoas gostam de exagerar nas histórias. O que eu sei é que, até o fim da vida, a minha avó e o meu avô ficaram com o maior respeito por Lampião. Não queriam outra visita daquelas por nada nesse mundo, mas respeitavam demais. Pois, então, acho que é isso que acontece com o Saddam, o povo respeita.
Quando cheguei ao jornal, paguei apenas pela corrida. Injustiça. Com uma conversa daquelas, o motorista tinha todo o direito de cobrar couvert artístico.
* * *
Os jogos ainda nem começaram, mas, sinceramente, não agüento mais ouvir falar em Olimpíada. Nada contra os atletas, é claro, que aqui treinam freqüentemente em condições adversas e lá vão dar o melhor de si; mas tudo contra essa overdose de especiais triviais, flashes sem brilho, ufanismo sem critério. Não há espírito olímpico que sobreviva a massificação tão acachapante e comercialização tão desenfreada; é como se o único objetivo de todo o esforço individual e coletivo fosse apenas vender mais um par de tênis. Argh!* * *
O Rio de Janeiro é uma cidade tão estranha, mas tão estranha, que a melhor festa que a Zona Sul vê há tempos — o aniversário de 40 anos do Cláudio Gomes — aconteceu no sábado passado... em Niterói! Vai entender.(O Globo, Segundo Caderno, 12.8.04)
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