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agruras de uma vida nova
Tudo começou quando eu estava de férias em Riccione, acompanhando o Campeonato Mundial de Masters de Natação. Humilhada pela disposição e pela resistência da Mamãe e das suas amigas, um grupo de imbatíveis sereias vintage, decidi que não podia continuar com a minha vida de nerd, perpetuamente colada ao computador. Até porque, em Riccione, o hotel não tinha computador. Em compensação, tinha bicicletas, que os hóspedes podiam usar à vontade. De modo que lá fiquei pedalando, enquanto as sereias se encarregavam de conquistar medalhas para o Brasil.
Dez dias depois, quando segui para Veneza, estava com tal preparo físico que nem reclamei quando soube que meu quarto ficava no terceiro andar. Não posso dizer que subir e descer escadas tenha virado segunda natureza para mim, mas, no fim da temporada, eu já conseguia chegar ao quarto sem que a trilha sonora de "Carruagens de fogo" me viesse automaticamente à lembrança.
Diante de tão notável progresso, resolvi manter o ritmo na volta para casa. Tirei a bicicleta da garagem e me matriculei numa academia, disposta a encontrar algum exercício que combinasse comigo. As amigas que freqüentam a academia vieram em meu auxílio:
-- Há uma aula de alongamento ótima que você faz praticamente deitada no chão!
Parecia perfeito -- mas só parecia. Descobri músculos que eu nem sabia que existiam, e logo cheguei à conclusão de que a vida era bem mais suportável na ignorância anterior.
-- Por que você não faz Pilates? A aula é ótima e fácil, há senhoras de 80 anos que fazem Pilates direto, todos os dias.
Fui à aula e constatei que era verdade, que há mesmo; mas, depois do campeonato em Riccione, eu devia ter apreendido que certas senhoras de 80 anos são capazes de coisas que nem duas de 40 fazem.
-- Tenta yôga : o professor das quartas e sextas é tudo de bom...
Yôga?! Como assim, yôga?! Sou do tempo da yóga com acento agudo, e não consigo me imaginar fazendo yôga com circunflexo. Mas o fato é que as possibilidades de encontrar um exercício compatível com meu estado de espírito diminuíam rapidamente. Antes que alguém me recomendasse golf sem e, perguntei à Bia o que ela sugeria.
-- Que pergunta, mãe! Spinning, é claro.
Para quem não sabe o que é spinning, explico: é uma aula coletiva de bicicleta ergométrica, em que várias pessoas pedalam simultânea e freneticamente. Elas obedecem às instruções do professor que, lá na frente, alterna ordens desumanas com palavras de estímulo, na esperança de ser ouvido acima do volume ensurdecedor do som bate-estaca.
Pensem numa daquelas galés de desenho animado ou de filme histórico, com um capataz estalando o chicote nas costas dos remadores ao ritmo dos tambores de selvagens exóticos, e vocês terão uma idéia bastante aproximada do que é o spinning.
Nem preciso contar as conseqüências funestas da primeira aula; mas uma colega me empurrou até a segunda, um dos professores me arrastou até a terceira e, à quarta, fui de livre e espontânea vontade. Hoje, dez aulas depois, posso afirmar, com absoluto conhecimento de causa: spinning é um horror! As amigas da academia tentam me estimular e garantem que logo me acostumo.
-- Você já não está se sentindo superbem depois de fazer uma aula?
Honestamente? Não, não mesmo. Já não fico mais dolorida, mas os únicos sentimentos que o spinning me desperta -- como, aliás, qualquer exercício -- são um tédio inenarrável e um cansaço miserável. E, vá lá, uma grande paz na consciência, que compensa o resto. Mas que resto!
-- Não estou conseguindo ajustar este banco, está todo escorregadio, cheio de óleo.
-- Óleo?! Isso não é óleo, não, é suor.
Aaaaaaaaaaaaaaaaargh.
* * *
Oquêi, estou sendo injusta. O spinning não é tão tenebroso assim. Os professores são simpáticos e atenciosos e, honra seja feita, se não fosse justamente a sensação de estar nas galés, eu nunca faria exercício tão puxado. Hoje, a maior dificuldade que encontro no spinning é ir até a academia -- sob todos os pontos de vista. É que vou de bicicleta.
Andar de bicicleta em Riccione era moleza. Imaginem que ciclovia, na Europa, é uma pista exclusiva para bicicletas! Só bicicletas! Enquanto o Brasil não importa este conceito revolucionário, vou me virando como posso. É duro, mas tenho feito progressos.
No começo, achava quase impossível dar uma volta na Lagoa. Ficava perturbadíssima quando cruzava com bípedes ou quadrúpedes, e descia da bicicleta sempre que passava por alguém. Não mais. Depois de dois meses de dedicado esforço, já sei desviar de cachorro, já ultrapasso corredores e já aprendi até a andar devagar o suficiente para seguir grupos de pessoas passeando de braços dados, famílias dispersivas e carrinhos de bebê emparelhados.
Sobretudo, aprendi que tocar a sineta na ciclovia não pega bem: os pedestres ficam muito contrariados.
(O Globo, Segundo Caderno, 26.8.04)
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