5.8.04




Pelo direito de ir e vir e, sobretudo,
pelo direito de parar no meio


A foto, que saiu aqui mesmo no GLOBO, pouco antes das minhas férias, mostrava o banco de uma praça no Leblon. Ou, melhor dizendo, restos do que, um dia, foi um banco: uma estrutura de ferro vazia, da qual haviam sido arrancadas todas as ripas de madeira. Não liguei muito na hora mas, com o tempo, a imagem foi me incomodando cada vez mais — nem tanto pelo vandalismo retratado, que poderia acontecer em qualquer lugar, quanto pela inutilidade do banco, mesmo quando inteirinho e perfeito. E, nem preciso dizer, pelas melancólicas implicações de tal inutilidade.

Afinal, de que adianta um banco de praça se ninguém tem mais paz para sentar-se nele? Quem vai ser louco de ler jornal, namorar, conversar com amigo ou simplesmente dar um tempo para pensar na vida, num banco de praça, numa cidade desgovernada como a nossa? De que adianta um banco puramente ornamental, como são, em princípio, todos os bancos de praça do Rio de Janeiro? O selvagem que arrancou as ripas do banco da foto estava, ainda que involuntariamente, prestando um serviço de utilidade pública: vai que um turista desavisado acreditasse que ele estava lá para ser usado...

* * *

O pior é que a imagem do banco inutilizado continuou me assombrando ao longo das férias. Onde quer que houvesse uma praça e um banco — ou seja, por toda parte — eu me lembrava, com um aperto no coração, do nosso banco desmantelado. Em Riccione, onde as famílias alemãs em férias saíam para aproveitar a brisa do fim da tarde; em Veneza, onde as mães conversavam sossegadas enquanto as crianças corriam soltas por todos os lados; em Barcelona, onde há tantos casais apaixonados quanto turistas exaustos; enfim, em todos esses lugares, o malfadado banco me voltava à mente, e eu sentia uma tristeza enorme pela minha cidade, mais bonita do que qualquer outra cidade, mas onde ninguém passeia mais, ninguém mais joga conversa fora na rua ou namora na praça, sem ter a sensação (muito correta) de estar correndo um grave risco de vida.

Converso com amigos que também viajaram recentemente e descubro que o sentimento (ressentimento?) é geral. Antigamente voltávamos da Europa falando de exposições, concertos, modas. Houve até uma época, não muito remota, em que falávamos das compras, imaginem. Parece incrível, mas sou testemunha: nós, brasileiros, privilegiados ma non troppo, conseguíamos viajar e, ao mesmo tempo, fazer compras. Em moeda forte!

Mas isso é outra história. Hoje, exceção feita a correspondentes de guerra, nossas impressões de viagem são singelas e semelhantes. A globalização e a internet acabaram com o impacto das novas novidades; o que nos atrai, o que mais nos chama a atenção é, justamente, o que antes tínhamos em comum com os lugares que visitamos. Assim, não nos cansamos de comentar que coisa extraordinária é andar pela rua com tranqüilidade, que maravilha é passear olhando vitrines, que delícia indescritível é sentar num banco de praça — qualquer praça — e se deixar ficar, vendo o movimento. Que perfeição é a praça!

Famílias inteiras aparecem ao entardecer, para uma caminhada antes do jantar; amigos jogam xadrez; vizinhos chegam do trabalho e fazem uma social antes de subir para casa. Crianças brincam à vontade, cachorros trazem seus donos para a rua e, aqui e acolá, um gato confere o seu território. Não se ouvem tiros, não há assaltos, a polícia não anda com fuzis e metralhadoras à vista. Ninguém cai morto só assim, de bala perdida ou pura maldade.

Passei um bom tempo das minhas férias curtindo as praças de Veneza e Barcelona, encantada de ver esta coisa aparentemente natural: o cidadão em pleno usufruto da sua cidade. Não precisaria ter ido tão longe para isso. Montevidéu, logo ali na esquina, está cheia de praças, que os uruguaios usam contentes, de cuia e bomba na mão; em Buenos Aires, apesar de todas as crises, os portenhos continuam aproveitando os seus lindos espaços públicos. Eles podem até ter perdido para a gente no futebol, mas ganham, de goleada, em qualidade de vida — mesmo quando não têm um peso no bolso. Entre outras coisas, eles têm a grande vantagem de ter um governo que ama a sua cidade.

* * *

Não sei quando perdemos o Rio. Não sei quando deixamos de combinar encontros uns com os outros na pracinha, quando deixamos de parar na esquina para uma conversa sossegada, quando confinamos as crianças aos shoppings e aos playgrounds — duas áreas tão distantes da nossa alma latina que, até hoje, continuam com nome em inglês. Não sei quando a cidade deixou de ser a extensão das nossas casas para se tornar esta terra de ninguém, em que vivemos cada vez mais assustados e cada vez menos.

Toda a demagogia do casal que aí está será inútil enquanto não reconquistarmos o Rio, o nosso direito de ir e vir e, sobretudo, o nosso direito de parar no meio, entre o ir e o vir -- para poder ver, com calma, como a cidade continua maravilhosa.

(O Globo, Segundo Caderno, 5.8.04 -- No jornal, o título desta crônica foi Memórias de viagem e de um banco quebrado)

Este é o post número 3.000 do internETC.

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