19.5.11

O homem do FMI: uma história mal contada


  
Você é um dos homens mais poderosos do mundo. Da sua palavra dependem negócios de bilhões de dólares e o destino das nações. Você está hospedado num hotel de luxo em Nova York, num quartinho de três mil dólares de diária, como convém à sua exaltada posição social; vai pegar um vôo para casa logo mais, acabou de tomar banho e ainda está nu como veio ao mundo, quando eis que adentra o seu quarto uma jovem camareira. Você:

a) Diz “Pardon, Mademoiselle!”, e volta para o banheiro para pegar uma toalha, enquanto a moça se retira rapidamente;

b) Dá um berro de susto ao descobrir alguém num quarto que deveria estar vazio;

c) Dá uma bronca na camareira por entrar sem avisar;

d) Confunde a camareira com a garota de programa que convidou para uma visitinha;

e) Atira-se sobre a camareira, sem mais nem menos, e tenta estuprá-la.

Para mim, de todas as hipóteses, a última é a que parece menos provável. Estou de acordo com a maioria dos franceses. Também acho que o diretor do FMI está sendo vítima de uma conspiração. Qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento dos costumes norte-americanos sabe que mesmo a cantada mais inocente pode, nos Estados Unidos, ser tomada por assédio sexual; como é que um homem experiente vai arriscar a carreira por uma tentativa de estupro tão gauche? Um homem desarmado -- qualquer homem desarmado -- tentaria começar um estupro exigindo sexo oral? Numa boca cheia de dentes?! Sei que o mundo tem de tudo, mas curtir essa forma específica de prazer me parece perigosa além da conta.

Pela Teoria Conspiratória, há vários outros pontos por explicar. Os hotéis acima de uma estrela têm trancas e, do lado interno das portas, pequenos lembretes para que ninguém deixe de utilizá-las. Trancar a porta é, pois, segunda natureza de quem freqüenta hotel. Em muitos deles, também, a forma de acender as luzes e de “ligar” o quarto é enfiando a chave num aparelhinho junto ao interruptor. Com isso, ninguém precisa mais pendurar plaquinha de “Silêncio!” do lado de fora. Supondo, porém, que nesta suíte de três mil verdinhas não existam dispositivos que informem aos funcionários que os hóspedes estão no quarto, e que o nosso antiherói tenha esquecido de pendurar a tal plaquinha -- como é que uma moça de 32 anos, em plena forma, se deixaria pegar por um sujeito de 62?  E mais: um francês tomaria banho antes de embarcar de volta para casa?!

* * *

O caso Strauss-Kahn é sem dúvida uma tragédia para os envolvidos, especialmente para o indigitado senhor Strauss-Khan, mas tem tal quantidade de elementos de farsa que parece encomendado para distrair a atenção dos leitores das notícias terríveis do cotidiano: um protagonista não muito simpático, uma pobre moça imigrante, uma situação sexual abominável que termina numa reviravolta inesperada. Ou muito me engano, ou ainda vira livro e filme, se é que já não está virando em algum lugar; a moça, se quiser e se tiver um mínimo de predicados (que há de ter, considerando-se a tresloucada ação que suscitou), vira capa da Playboy, com carimbo para o mundo rarefeito das celebridades.

* * *

Pelo lado sério, porém, há que se reconhecer um ponto inquestionável: se tudo ocorreu como alega a acusação, é um progresso sensacional ver um poderoso atrás das grades por atacar uma moça humilde. Há alguns anos – e mesmo hoje, em muitos cantos do planeta – ela seria demitida por criar caso para o doutor, que ainda iria embora do hotel com um pedido de desculpas da direção.


O mundo progride, apesar de tudo.

* * *

Por falar em hotel e em situações escabrosas: há alguns anos, fiquei hospedada num hotel que o jornal habitualmente usava, em São Paulo. Não tive tempo de fazer check-in quando cheguei do Rio, e fui direto para o evento que me esperava. Só voltei no fim da noite. Fiz registro, recebi uma chave e subi pro quarto.

Quando acendi a luz, um homem levantou-se de um pulo da cama, onde dormia. Ficamos parados feito dois idiotas, aos gritos, cada um mais assustado do que o outro. Fuji correndo para a recepção, onde dei uma bronca no moço do front-desk e exigi que ele me fosse comigo até o novo quarto – que, felizmente, estava vazio.

Corta.

Passam-se uns meses, vou de novo a São Paulo e o jornal me hospeda no mesmo hotel -- ao qual, novamente, só chego depois do jantar, que foi até tarde. No check-in, expliquei o que tinha me acontecido da última vez, e pedi para que, por favor, fossem mais cautelosos com as chaves. O rapaz do front-desk me olhou de banda e disse, peremptoriamente, que tal coisa nunca poderia acontecer no seu estabelecimento. Depois, fez questão de me mostrar o sistema de chaves e de fazer mil protestos de inocência hoteleira: baixaria daquelas, só na concorrência.

Dessa vez, escaldada, me aproximei do quarto com cuidado. Em vez de ir entrando sem mais nem menos, parei na porta para ouvir se vinha barulho lá de dentro. Tudo silencioso. Abri  devagarinho – e quase tive um ataque ao ver um moço japonês, pelado, usando um notebook. Ele me olhou perplexo. Em vez de ficar aos gritos, fechei a porta correndo, e voltei para a recepção, onde cheguei cuspindo marimbondo. O faxineiro, que limpava o hall e que já tinha ouvido o meu discurso na chegada, não se conteve, e caiu na gargalhada.

Mais tarde, contando a história para a Isa, secretária da redação, ainda tive que ouvir gracinhas dos colegas:

-- Puxa, você está dispensando quarto com homem? Tá podendo!

-- Olha, Isa, quando eu for a São Paulo, quero ficar nesse hotel da Cora...!

* suspiro *  


(O Globo, Segundo Caderno, 19.5.2011)

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