26.5.11

Fora dos trilhos



Eram quase sete quando saí da Casa de Saúde São José, ali no Humaitá. Fiz sinal para dois ou três taxis vazios que não pararam sabe-se lá por que, e para outros tantos cheios. O sistema de luz acesa na capota funciona razoavelmente bem, mas está longe de ser à prova de falha humana, seja do motorista, seja do passageiro. E fui descendo em direção à Voluntários, para ver se por lá estava mais fácil. Ingenuidade minha: naquele horário?!

Millôr me ensinou uma coisa muito importante: nunca esperar por um taxi parada. Ninguém garante que um taxi passará com certeza, que estará vazio, que poderá me levar. Taxi se espera andando porque, mais hora menos hora, mesmo que não venha taxi algum, a gente acaba chegando onde precisa.

Foi o que me aconteceu. Ainda não estava de todo escuro, o tempo estava bom, o sapato não apertava o pé; além disso, a cabeça estava desarrumada e andar dá um sacode, separa o que dói de verdade do que só atrapalha. No caminho parei numa petshop para fazer carinho num gatinho lindo que estava exposto para adoção, e numa padaria, para levar o litro de leite que Mamãe pedira. Em pouco tempo cheguei à casa dela, na altura da Barão de Lucena. Liguei para a Bia.

-- Ai, mãe, sair andando pela rua a essa hora é um perigo! Você podia ter sido assaltada.

-- Assalto não tem hora -- ponderei.

-- Eu fui assaltada na Dezenove de Fevereiro ao meio-dia, em plena luz do sol! – exclamou Mamãe, entrando na conversa cujo conteúdo não era difícil de adivinhar. Depois, quando desliguei, ela continuou:

-- Este pessoal tem mania de achar que assalto só acontece de noite. A Laura e as meninas são a mesma coisa. Mas se a gente deixa de sair na rua por causa de assalto, a gente não sai nunca mais. Quem vive com medo morre um pouco todos os dias. Eu prefiro exercer a minha liberdade, indo aonde eu bem entender na hora em que me der na telha e, se for o caso, morrer de uma vez só. Não vou me acovardar por causa de assalto, não vou mesmo.

Quando Mamãe fala em exercer sua liberdade de ir e vir, não está falando da boca para fora. Aos 87 anos, é a maior andarilha da família e todos os dias faz, pelo menos, o percurso de ida e volta até o Guanabara, na praia de Botafogo, para treinar natação. Eu apenas tenho piques de atividade física e teimosia para chegar uma vez que decidi partir; mas se não ando mais não é por medo, e sim por preguiça.

-- No sábado fui ao Olaria para o campeonato, -- continuou Mamãe. – A turma do clube ia sair de van de Icaraí, de modo que tive de ir sozinha. Quando cheguei, todos vieram me perguntar como eu tinha vindo. Ora, de ônibus, naturalmente. E então me saudaram como se eu fosse uma espécie de heroína saída de algum romance policial de terror, ou coisa que o valha, só porque eu tinha ido de ônibus. Levei duas horas e meia, é verdade, mas desse tempo meia hora foi pesquisa, porque eu não sabia onde pegar o ônibus para Olaria. Depois, em vez de pegar o que passava em frente ao clube, peguei um outro, que me indicaram, mas que estava errado. O motorista foi simpático e me explicou que, ficando num determinado ponto, era só esperar pelo número tal que não tinha erro. Fiquei no ponto, quer dizer, fiquei num bolinho de gente num lugar onde um dia deve ter existido um marco de alguma espécie, mas que hoje não tem mais indicação de nada.

Fiz, imediatamente, uma Anotação Mental para Crônica: “Falta de sinalização e de orientação para quem anda de ônibus”.

-- O número tal de que o motorista falou não chegava nunca e, no fim, acabei tendo que pegar um taxi, porque estava começando a me atrasar para o campeonato. A corrida até o clube deu oito reais, quer dizer, teria dado para andar perfeitamente até lá, mas eu não tinha idéia disso.

* * *

 Voltando àquela Anotação Mental: como quando a gente pega ônibus tende a usar sempre as mesmas linhas, é normal que nem se dê conta de como é difícil conseguir informação para pegar, pela primeira vez, um ônibus para onde nunca esteve. E isso nós, cariocas, acostumados com a cidade, sabendo pedir informações e entendendo perfeitamente a resposta. Imaginem o sufoco dos turistas que queiram se arriscar nos transportes públicos!

Está se fazendo muito alarde com o prodigioso atraso das obras para a Copa e do estado calamitoso dos nossos aeroportos, mas pouco se fala de como, uma vez em terra, as pessoas vão chegar do ponto A ao ponto B. Fala-se pouco, também, do que vai ser a nossa vida com a Copa rolando solta, mas aí até se entende o silêncio: simplesmente não dá para imaginar.

* * *

Sabem aquela pessoa que não foi ao show do Paul? Pois é. Sou eu. De modo que não vivi a Grande Experiência Carioca da temporada, que foi ir de trem até o Engenhão. É muito bom e alvissareiro saber que todos viajaram bem e com grande conforto, mas é preocupante, na mesma medida, que se tenha dado tanta atenção ao fato. Não conheço cidade onde uma viagem de trem sem qualquer acontecimento catastrófico no meio seja manchete de primeira página. É verdade que não conheço a imensa maioria das cidades, mas, cá entre nós, quero que elas se lixem; eu moro aqui, e gostaria que, na minha cidade, o funcionamento normal dos transportes públicos não fosse notícia.


(O Globo, Segundo Caderno, 26.5.2011)

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