23.9.10

Mundo animal



Na manhã do dia 2 de setembro, cerca de 80 alunos das turmas 55 e 56 do curso de medicina veterinária da Universidade Federal de Goiás assistiram a uma palestra do professor de medicina preventiva e do veterinário responsável pelo Centro de Controle de Zoonoses de Aparecida de Goiania. A idéia era que aprendessem como vacinar um cão, já que, no dia 18, participariam da campanha de vacinação antirrábica da cidade.

Terminada a parte teórica, passou-se a parte prática: os alunos formaram duplas para treinar a vacinação. Enquanto um segurava o animal, o outro o vacinava. Tudo certo e civilizado, não fosse por um detalhe: havia apenas cinco cachorros para 80 alunos. Cinco cachorros jovens, saudáveis, retirados do CCZ de Aparecida de Goiania. Que foram vacinados cinco vezes cada um, num crescendo de pânico e de sofrimento; e que, depois, foram friamente assassinados.

Esta aula de crueldade e de estupidez poderia ter sido evitada de inúmeras formas, mas, pelo visto, numa aula de veterinária!, ninguém se preocupou com os cães martirizados. A falta de ação dos alunos em prol dos animais é, claro, menos grave do que a dos professores, que deveriam dar exemplo e ensinar, entre outras coisas, o respeito à vida e ao sofrimento alheios.

Esses professores indignos do nome também não se preocuparam em transmitir a seus alunos o conhecimento do primeiro parágrafo do artigo 32 da lei 9065/98, fundamental no cumprimento da sua futura profissão:

“Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.”


Espero que as entidades de proteção a animais de Goiás tomem as devidas providências para processar os professores, o CCZ, a universidade e demais responsáveis, não só por violação da lei 9605/98, mas também por estarem usando o dinheiro do contribuinte para cometer crime. Assim, quem sabe, os alunos de veterinária da Universidade Federal de Goiás talvez aprendam que -– apesar do que se vê em Brasília, do que se lê nos jornais, do que se vê à nossa volta -- nem todos os crimes ficam impunes no país.

* * *

Numa troca de emails com a Bia, minha amiga Ana Yates, protetora de animais, foi direto ao ponto:

“Infelizmente, isso se repete no Brasil inteiro. Os Centros de Controle de Zoonoses são fornecedores de animais para as mais horrendas e desnecessárias práticas que, pasme, ainda são comuns em escolas de veterinária. Como é possível formar um profissional que se propõe a tratar e a salvar seres vivos, maltratando e matando seus "clientes"? É por isso que, com frequencia, esbarramos em veterinários incompetentes e insensíveis, que não respeitam e banalizam a vida dos animais.”

* * *

O respeito pela vida não é maior no Rio. Teria sido bom encontrar algum motivo para comemorar o Dia da Árvore, mas, para onde quer que se olhe, o que se vê é o mais completo descaso pela natureza. Há algumas semanas, um grupo de moradores da Lagoa subiu o Parque da Catacumba e fincou, lá no alto, uma bandeira do Brasil. O ato foi motivado pela devastação que vem acontecendo desde o final do ano passado, quando eles foram acordados pelo barulho de motoserras.

Estava em curso o que foi definido pelas autoridades incompetentes como “plano de manejo”, uma idéia de jerico travestida em nome politicamente correto. Decidiram essas autoridades que a única vegetação que merece espaço é a nativa; tudo o que for exótico (ou exógeno, outro nome pomposo) é descartável. Ora, como as pobres árvores que cresciam no topo da Catacumba não eram, dizem, autóctones (!), foram abaixo. Não importa que fossem bonitas e crescidas, com troncos de mais de meio metro de diâmetro, e que estivessem cumprindo, ali, os importantes papéis de conter a encosta e servir de moradia aos animais silvestres.

Na época, depois de discussões acaloradas, as autoridades concordaram em dar uma trégua à derrubada. Ficou combinado que uma reunião seria marcada em data oportuna, para que se chegasse, eventualmente, a uma solução benéfica para todos (árvores e animais incluídos). Em março e abril, o desmatamento teve conseqüências sérias: durante as chuvas torrenciais, toda aquela área do parque veio abaixo (e abaixo continua, à vista de quem quiser conferir).

Tem mais. Desde o primeiro ataque das motoserras, a fauna local diminuiu visivelmente. Os micos foram embora, os gambás sumiram, os tejus estão virtualmente extintos.

Apesar disso, há algumas semanas, as motoserras voltaram –- sem nenhuma reunião, nenhuma explicação das autoridades, nada. Um trecho do morro, que equivale a uns três campos de futebol, virou clareira. As árvores mortas, cortadas, estão lá em cima, secando ao sol, numa fogueira que só espera a próxima queda de balão; as árvores novas ainda são um paliteiro, incapaz de segurar encosta ou abrigar pássaros e outros bichos.

Os moradores estão desconsolados. Não se conformam nem com a matança das velhas árvores, nem com a falta de respeito de que foram vítimas. Mas também, pudera: são cidadãos que ocuparam o espaço que ocupam legalmente, pagaram caro pelos seus apartamentos e gastam uma pequena fortuna anual em IPTU. Otários.


(O Globo, Segundo Caderno, 22.9.2010)

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