2.9.10

Impressões de viagem II








Imaginem uma cordilheira parcialmente submersa: as montanhas vêm lá de baixo, e erguem-se centenas de metros acima do nível do mar. A meio caminho, encontram-se cobertas de água, e aí se transformam em estranhos rios sem nascente e sem praia, ladeados por paredões de rocha. Os fjords noruegueses, que foram cavados nas rochas pelas geleiras derretidas durante a última era glacial, são mais ou menos assim – relativamente estreitos, mas tão fundos, que são percorridos regularmente pelos mega navios de cruzeiro.

É uma paisagem espetacular, em que montanhas brotam da água por todos os lados. Em alguns pontos a rocha é nua, em outros já sai daquilo que parece rio coberta por uma vegetação bem comportada, em tons de verde suaves, diferente em tudo da associação amazônica água-vegetação que me vem automaticamente à cabeça.

Em Geiranger, lugar tão bonito que foi nomeado Patrimônio da Humanidade pela Unesco, pegamos um dia de sol perfeito, espremido, segundo a meteorologia, entre dois dias de chuva. O ar é limpo e, aqui e ali, traz o cheiro das flores que os habitantes da região cultivam aos milhares.

A pequena aldeia plantada na ponta do fjord, habitada permanentemente por 250 pessoas, é visitada por mais de 160 navios de cruzeiro durante os quatro meses da temporada turística. O movimento é tão intenso que é difícil encontrar foto de Geiranger no verão sem um ou dois mega navios ancorados no porto.

Os problemas de logística são tremendos: no dia que passamos lá, havia 64 ônibus indo e vindo por montanhas onde, habitualmente, circulam apenas dois, o escolar e o do transporte público. As estradas são íngremes e estreitas, ultrapassagens são impraticáveis e até mesmo mão e contramão exigem perícia e boa vontade, sobretudo nas curvas fechadíssimas que seguem o contorno da montanha. Ainda assim, tudo é tão bem organizado que, tirando a fila do sorvete num ou noutro quiosque, ninguém chega a reparar que está no meio de uma multidão.

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De Geiranger, subimos montanha afora em direção a Herdalssetra, uma “fazenda de verão” que, há cerca de 300 anos, funciona espetada no meio de uma vista deslumbrante. Como outras da região, ela só pode ser usada entre junho e setembro; quando o frio começa, gente e bichos descem em direção ao vale, e invernam em Norddal.

Ao contrário da maioria das fazendas de montanha, Herdalssetra sobreviveu à modernidade e às tecnologias que transformaram a pecuária em todo o mundo. É mantida como atração turística, mas para que a atração funcione a contento, ela tem que mostrar a que existe – e o faz por meio de dois queijos e de um caramelo.

Uns e outro são preparados com o leite de cerca de 200 cabras, tão acostumadas a conviver com turistas que correm para cercar os ônibus que chegam, na esperança de ganhar um petisco diferente. Um dos queijos é um tradicionalíssimo e delicioso queijo cremoso, muito branco e leve; o outro é um queijo marrom, com cara e consistência de doce de leite duro. É forte e adocicado e, para o nosso paladar, não chega a ser exatamente bom, embora seja interessante e cheio de personalidade. O gosto não vem de açúcar nenhum adicionado à receita, mas sim do excesso de lactose: são precisos 40 litros de leite para produzir um quilo desta iguaria que só se encontra na Noruega. O caramelo, finalmente, é bem parecido com o nosso pingo de leite, com a diferença de ser feito com leite de cabra, e é muito gostoso.

Quem nos apresentou a esses acepipes foi Åshild Dale, atual proprietária da fazenda, cuja família cuida da terra e dos bichos desde 1790. Além das cabras, vivem lá vacas, carneiros e os lindos cavalos louros dos fjords. Alguns dos 30 galpões e casas podem ser alugados para férias e feriados; eles são pequenos, robustos, e têm lindos telhados de grama, perfeitos como isolante térmico.

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Ao longo dos fjords, vêem-se casas isoladas e encarapitadas feito cabras na montanha. Algumas formam vilarejos mínimos, outras são a solidão em pessoa; a gente não consegue deixar de pensar no que leva alguém a construir em locais tão remotos, ainda por cima sujeitos ao clima impiedoso. Assim como jamais vou conseguir entender o que se passa no inconsciente coletivo chinês, por exemplo, desisto também de compreender a alma escandinava.

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Por onde quer que se ande na Noruega o altíssimo IDH é visível, quase palpável. Não há nada remotamente parecido com uma favela, as calçadas não têm buracos, as casas são bem conservadas e não têm pichações nas paredes, a população é saudável e veste-se bem, os carros são novos e bons.

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Em Oslo, a guia nos descreve o ano: em setembro, começa a gear. Outubro, novembro, dezembro, janeiro, fevereiro, março e abril são meses escuros e frios; em maio é primavera, e o verão dá as caras em junho, julho e agosto. Mas nem sempre. Alexandre Falcão, que mora lá, contente, me tuitou na semana passada:

-- "Fugistes" de Oslo em boa hora! Não para de chover desde então e faz um frio de matar... Ontem teve até granizo... em pleno verão!

Em suma: assim como as nossas estações variam pouquíssimo ao longo do ano, parece que as deles também não mudam muito. Poderíamos até ser – e não só no clima -- verso e reverso da mesma medalha, dessa medalha esférica e complicada que gira, azul, no espaço.

(O Globo, Segundo Caderno, 2.09.2010)

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