19.8.10

Férias escandinavas, filmes indianos



Sou leitora compulsiva de qualquer coisa que diga respeito a viagens: livros, revistas, anúncios, filipetas de voadoras, classificados de hotéis, tudo chama a minha atenção. Chego a ler guias como quem lê romances, e não é raro ter um ou dois na mesinha de cabeceira, sobretudo de lugares que ainda não conheço. Apesar disso, nunca tive muito interesse pela península escandinava, lugar certamente civilizado e muito bonito a julgar pelas fotos, mas plantado no pior ponto possível do mapa, sujeito a chuvas, trovoadas e um frio da peste. Menos interessante como material de férias, do meu ponto de vista, só mesmo aqueles mega-navios de cruzeiros, cheios de famílias alegres, crianças insuportáveis e velhinhos siderados diante de caça-níqueis.

Pois adivinhem onde passei minhas férias. Exatamente: num cruzeiro pela Escandinávia! Se não tivesse sido ótimo, seria até o caso de dizer que Deus castiga; mas o Todo Poderoso portou-se com a máxima cortesia e nos presenteou com alguns lindos dias de sol em cenários de folhinha de padaria.

É que, este ano, o Campeonato Mundial de Natação Masters foi realizado em Gotemburgo, na Suécia. Mamãe foi competir e eu fui junto, de enxerida. Não podia perder a chance de vê-la juntar mais umas medalhas à sua coleção. Pois até sob este aspecto a viagem foi um sucesso. Dos 25 ouros trazidos pelo Brasil, cinco foram dela, e três com recorde de campeonato: 400 metros medley, 50 borboleta e 100 borboleta.

Depois, para comemorar o resultado, embarcamos num imenso navio em cruzeiro pelos fiordes da Noruega. Descobrimos que o famoso sol da meia-noite se põe na verdade às onze, que claridade e luminosidade não são sinônimos e que a nossa bagunça tropical faz muito mais bem à alma do que a eficiência escandinava.

Ainda vou falar mais disso mas, por hoje, perdoem eventuais falhas de coerência. Cheguei às cinco da manhã e ainda não descobri se, para o meu corpo, vale o dia daqui ou a noite de lá.

* * *

Quando assisti a “Bombaim” pela primeira vez, me encolhi na poltrona assim que o filme começou. As cenas iniciais não faziam prever nada de bom: rapaz insignificante chega de ônibus a aldeia insignificante, vê mocinha insignificante, se apaixona, passa a andar atrás dela. Ele hindu, ela muçulmana. Isso poderia ser interessante se este tipo de amor proibido não fosse a base de pelo menos metade da produção dos filmes indianos ao longo dos tempos; ainda por cima, o cenário não ajudava, e o trabalho dos atores não convencia.

Surpresa nenhuma. Num país onde são feitos quase 900 filmes por ano, é normal que muitas centenas deles sejam pelo menos esquecíveis, para não dizer francamente ruins. O grande milagre é que a Índia consiga apresentar tantos e tão bons filmes ano após ano, e que o seu cinema continue, apesar da influência da televisão e dos filmes ocidentais, com uma pegada tão original.

Pois “Bombaim”, lançado em 1995 com extraordinário sucesso dentro e fora do país, é emblemático. Passadas aquelas primeiras cenas constrangedoras, o filme cresce de tal maneira que chega aos créditos finais com nota dez, cinco estrelas e Bonequinho aplaudindo de pé, vibrando com a música do imbatível A. R. Rahman, que arrebatou o Oscar em 2009 pela trilha de “Quem quer ser um milionário”.

Não vou contar como continua a história quando cai nos violentos ataques religiosos de 1992; basta dizer que o filme, do nosso ponto de vista, é esquizofrênico e inclassificável, dividido entre comédia e tragédia, ficção e realidade. “Bombaim” será exibido numa rara cópia em película no próximo sábado, dia 21, às 19h30, na Sala 1 da Caixa Cultural, como uma das atrações da mostra Cinema Indiano Contemporâneo, que começou semana passada e vai até o próximo domingo com uma seleção particularmente bem feita do que a Índia tem apresentado de bom na tela grande.

Cinema indiano e Bollywood, como vocês sabem, não são necessariamente sinônimos. O termo Bollywood só se aplica aos filmes produzidos em Bombaim, e ainda assim dentro de uma certa estética comercial. O próprio “Bombaim”, por exemplo, é um filme tamil, sem números cantados e sem dança. “Sr. e sra. Iyer”, de Aparna Sen (amanhã, às 16h30), é outro típico filme indiano que foge do que se imagina que seja um filme indiano típico. Nele, os conflitos religiosos são mais uma vez peças fundamentais para a ação, mas o foco está sobretudo nas emoções do herói muçulmano solteiro e da mocinha hindu casada (sim, sim, já vimos isso antes...) praticamente jogados nos braços um do outro.

Bollywood compareceu à mostra com alguns merecidos sucessos de bilheteria, entre eles “Lagaan” (próxima apresentação sábado, dia 21, às 15h30), sensacional épico em que uma partida de críquete decide os destinos de uma aldeia, e o divertido “Siga em frente, Munna Bhai” (hoje, às 18hs), em que o espírito de Gandhi transforma um bandido da pesada em ótimo sujeito.

Logo mais, às 20h20, depois de “Munna Bhai”, participo, lá na Caixa Cultural, de um debate sobre o moderno cinema indiano, ao lado de Ibirá Machado, Tatiana Monassa e Gisella Cardoso. Se tiverem um tempinho, apareçam: este é um universo cinematográfico dos mais ricos, coloridos e dignos de admiração.


(O Globo, Segundo Caderno, 19.08.2010)

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