8.2.07

Viajando nos abricós-de-macaco

Como a cronista foi parar onde nunca esteve,
fugindo das assombrações sinistras de Brasília


O tempo estava quente e carregado; a roupa colava no corpo, ainda que eu quase não estivesse suando. Eu pisava com cuidado na grama -- que mal enxergava no escuro -- e a cada pisada as sandálias faziam schlep-schlep, denunciando o chão encharcado. Um cheiro adocicado de fruta em decomposição disputava o ar com a umidade, e alguns pássaros insones piavam à minha passagem. Por uma fração de segundo, tive a sensação exata de que estava no meio de uma densa floresta tropical em Bornéu; mas logo cheguei à ciclovia e tratei de tomar satisfações com a minha imaginação delirante. Como assim, Bornéu? E por que cargas d'água Bornéu?!

Go figure, como dizem em Madagascar. Nunca estive em Bornéu. Acho que nem sei apontar onde fica Bórneu no mapa. Eu estava na Lagoa, a meio caminho entre a minha casa e o Palaphita Kitch, no meu pedaço de estimação, onde conheço cada bicho e cada planta.

Em dias de movimento, atravesso no sinal e faço o percurso pela ciclovia, como qualquer pessoa civilizada; naquela noite chuvosa, cortei caminho pelo pequeno bosque que fica antes do campo de beisebol ? aquele mesmo, onde os quero-queros insistem em fazer ninho. O cheiro tropical e esquisito que me levou para o outro lado do mundo, se é que Bornéu fica mesmo do outro lado do mundo, vinha de uns frutos de abricó-de-macaco espatifados no chão.

Isso aconteceu há uns dias, mas continuo tentando descobrir por que Bornéu. Não li nada a respeito de Bornéu nos últimos tempos, nem vi nada na televisão ou no cinema que se referisse a Bornéu. No dia seguinte voltei ao bosque para ver se viajava novamente nos malcheirosos frutos, mas nem isso: continuei em plena Epitácio Pessoa, me sentindo vagamente ridícula. Quando um casal de amigos apareceu na ciclovia, fiz de conta que consertava a corrente da bicicleta. Eles acenaram para mim, perguntaram se estava tudo OK, eu acenei de volta e disse que sim; e lá seguiram o seu caminho, inocentes da perplexidade que me ia pela cabeça. Bornéu. Ora essa.

Graças à internet, é claro que logo virei expert em Bornéu, lugar que, de certa maneira, não existe: é que este nome, usado pelos holandeses durante o período colonial para definir a ilha que se divide entre Malásia, Indonésia e Brunei, não é, obviamente, usado pela população local. Mas os problemas de Bórneu, terceira maior ilha do mundo (depois da Groenlândia e de Nova Guiné), são bem concretos.

De acordo com a Wikipedia, mãe dos burros, Bornéu tem um dos ecossistemas mais ricos do planeta, onde ainda vivem, apesar da crescente degradação do ambiente, 15 mil espécies de flores, três mil espécies de árvores, 221 espécies de mamíferos e 420 espécies de pássaros. A floresta, que antigamente cobria quase toda a ilha, é o único habitat dos ameaçadíssimos orangotangos de Bornéu, e refúgio de incontáveis espécies nativas, entre elas o elefante asiático e o rinoceronte de Sumatra. Este lugar precioso está vindo abaixo tão rapidamente quanto a Amazônia: metade de toda a madeira de florestas tropicais consumida pelo mundo sai de lá! E assim como parte da Amazônia foi destruída para dar lugar a plantações de soja, parte da floresta de Bornéu acabou em nome do cultivo de palmeiras, já que uma das principais fontes de renda da ilha é o óleo de babaçu.

Ainda assim, continuo sem saber por que fui dar com a imaginação em Bornéu, e tenho feito toda sorte de especulações. Provavelmente o cheiro podre dos abricós-de-macaco me lembrou Fernando Collor, José Dirceu, Jáder Barbalho e tantas outras figuras nauseabundas que voltaram ao noticiário; antes que eu caísse em depressão, meu subconsciente, num gesto extremo de autodefesa, me transportou para longe desse insensato mundo. Algo me diz que vou precisar mergulhar de cabeça no mapa-múndi para manter a sanidade mental durante os próximos quatro anos.

* * *

Enquanto isso, do lado bacana da vida, chegam ótimas notícias. Os filhotes dos franguinhos d?água meus vizinhos vingaram: um casal de adolescentes já até deixou a família, e se estabeleceu por conta própria na altura da Aníbal, mas dois pintinhos muito engraçadinhos permanecem na companhia dos pais.

Já no Bosque da Barra, a capivara minha xará acaba de apresentar ao mundo três lindos e roliços filhotes, que acompanham a mãe por toda parte. Calcula-se que as capivarinhas, que até outro dia permaneciam cuidadosamente escondidas, tenham nascido há coisa de um mês.

* * *

E a gente aqui se queixando de barriga cheia! Perto do prefeito de São Paulo, o Cesar é uma flor. Eta nóis, hein, Mãe?!

(O Globo, Segundo Caderno, 8.2.2007)

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