15.2.07



A CIDADE SUFOCADA

Como qualquer pessoa que mora no Rio, eu também não agüento mais ler, dia após dia, notícias sobre a violência sempre crescente na cidade. Quando a gente acha que pior do que está não pode ficar, acontece um caso como este terrível martírio do menino João Hélio, que nos parte o coração já despedaçado. É o fundo do poço? Não dá para saber: escrevo na terça-feira, e não sei o que poderá acontecer entre este momento e aquele em que o leitor terá o jornal em mãos. Nosso poço não tem fundo. Há sempre outro, mais fundo, até o inferno.

Dessa vez, porém, algo se sobrepõe ao sentimento de impotência que me toma a cada nova atrocidade. Além do horror diante dos assassinos, sinto um desgosto absoluto com os que defendem o famigerado estatuto da criança e do adolescente, com os que se recusam a discutir a redução da idade penal e, mais ainda, com os que, contritos de sacristia, batem no peito, abrem a boca suja na retórica das entrevistas, e atribuem a culpa da barbárie à "sociedade". À qual, é evidente, não pertencem.

Jogar uma estupidez dessas sobre pessoas de bem, que trabalham duro e pagam os impostos mais altos do mundo para sustentálos, a eles, sim, os magnatas do legislativo e do judiciário, responsáveis diretos uns pela feitura das leis, outros pelo seu cumprimento, é dar uma bofetada nesses pobres diabos que somos todos nós, idiotas a que se pede que aceitem que os estuprados não educaram bem os estupradores.

Estão solicitando de nós o pior que há em em nós mesmos. O mais santo dos cidadãos começa a rever suas idéias sobre pena de morte, sobre cidadania que só atinge criminosos, até mesmo sobre desforra física. E chegamos lá: afinal, pelo menos em pensamento, somos todos bárbaros. Todos, claro, exceto os inocentes do bom-mocismo, lemingues sem consciência que, por isso mesmo, dirigem seus carros blindados direto para o abismo.

Se um dimenor (expressão jocosa e sinistra para menores de 18 anos) não pode ser punido porque é uma pessoa em formação, como é que se dá a esse mesmo dimenor o direito do voto?! Se ele não está preparado para assumir plenamente as suas responsabilidades de cidadão, como é que pode exercer o direito máximo da cidadania, que é a escolha de quem vai dirigir o país? Eu gostaria muito que qualquer desses gênios da sociologia e da jurisprudência, que defendem tratamento especial para criminosos de 16 anos, me explicasse essa contradição. De preferência dona Ellen Gracie: uma senhora sempre tão bem maquiada, que tão bem sabe explicar porque os seus coleguinhas meritíssimos precisam daqueles aumentos salariais, haverá de ter uma explicação perfeitamente compreensível para uma distorção dessas.

Como seria de se esperar, todos voltam a bater, mais uma vez, nas teclas da educação e da impunidade. A educação é a base de qualquer sociedade saudável, mas é uma medida de longo prazo. Deve-se falar em educação sempre. Deve-se cobrar melhores condições de ensino e de aprendizado dos governantes e, sobretudo, exemplos mais edificantes do que os que nos são oferecidos diariamente no mar de lama e de corrupção em que se transformou o país. Mas falar em educação quando não podemos mais sair às ruas é mais ou menos como falar em prevenção a incêndios quando já tem gente saltando lá de cima e passando pela nossa janela, enquanto as chamas chegam ao pé da cama. Precisamos é chamar os bombeiros, os "bravos centuriões do fogo", se eles também não estiverem ocupados nas milícias.

Quanto à impunidade: ela é, óbvio, a causa de uma quantidade de crimes que poderiam ser evitados, inclusive os mais graves de todos, aqueles que desviam fundos públicos destinados a escolas, hospitais (e ambulâncias!), infra-estrutura e tantas outras coisas necessárias à vida de todo dia. É muito bom que afinal seja discutida e, sobretudo, que se tomem providências reais para coibi-la.

Mas é óbvio também que um caso como este, que chocou o país, está longe de ser conseqüência da impunidade generalizada. Sem punição as pessoas roubam mais, assaltam mais, até matam mais — mas não é a falta de punição que gera monstros como os que arrastaram João Hélio, como os que tocaram fogo nos ônibus cheios passageiros, como a Richtofen que matou os pais, como os filhinhos família que queimaram o índio em Brasília ou como tantos outros nos quais já desapareceu qualquer sinal de humanidade.

Chegamos ao mal absoluto, aquele que não tem explicação. Não estamos falando mais de criaturas ressocializáveis. Estamos falando de monstros. A prisão para criaturas assim é menos uma punição do que uma garantia de segurança para a população. Não pode ser calculada em três ou trinta anos; é caso de trancar a cadeia e jogar a chave fora.

Em tempo: também já não agüento mais ver tarjas evitando que o rosto dos assassinos "mirins" seja reconhecido quando sabemos que, no primeiro indulto, estarão nas ruas matando novamente! O que precisamos é colocar tarjas no rosto das pessoas de bem, para que não sejam reconhecidas pelos dimenor.

(O Globo, Segundo Caderno, 15.2.2007)

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