Preta Gil e a redenção das gordinhas
A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu: e agora, você?"Ai, caramba!", pensei com meus botões quando soube que a Preta Gil seria madrinha da bateria da Mangueira. "Isso não vai dar certo..." Ter pai famoso nem sempre ajuda, e o falso entusiasmo dos puxa-sacos sempre atrapalha. Como a torcida do Flamengo e a do Vasco juntas, eu também tinha certeza de que, no mundo rarefeito das Julianas, Quitérias e Gracyannes, a Preta ia pagar um mico de todo o tamanho. Literalmente.
Pois retiro, envergonhada, o que pensei. Quando ela entrou na passarela, muito bonita nas suas plumas, paetês e cristais, pisando no chão sem pedir desculpas a ninguém, me dei conta de que embarcara no preconceito que tanto critico nos outros. Me dei conta, também, de que estava vendo um dos momentos mais interessantes do carnaval. À minha volta, milhares de Pretas aplaudiam, com empolgação, a gordinha bem resolvida e cheia de atitude, que ali resgatava a auto-estima das mulheres de verdade, continuamente massacrada pela moda, pela mídia, pela publicidade.
Preta Gil lavou a alma de todas nós gordinhas, de todas nós não tão bonitas, de todas nós de todos os dias. Acontece que todas as mulheres sonham ser Juliana Paes, mas, salvo raríssimas exceções, todas são Preta Gil: reais, imperfeitas, lutando constantemente contra a balança e um mundo que condena, sem piedade, quem tem seus quilos a mais. Ver as deusas do samba evoluindo na avenida é pura magia, mas viver num país que só presta atenção a deusas é de matar.
Alguns puristas reclamam que ela atravessou o samba. Não tenho competência para julgar isso, mas -- e daí?! O que eu vi ali da frisa, no chão,foi uma moça cheia de carisma e de energia, dançando sem parar e arrancando aplausos entusiasmados da multidão. Não é essa, exatamente, a função de uma Rainha de Bateria? As muito lindas que me perdoem, mas, para mim, não teve para mais ninguém: minha musa deste carnaval foi a Preta Gil.
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Apesar do inesperado e, perdão pela palavra, "gratificante" sucesso da Preta, e apesar do excelente desfile, ando meio sei lá com a Mangueira, minha escola do coração. O episódio com a Beth Carvalho, num primeiro momento, me deixou passada: como fazem isso com uma mangueirense como a Beth?! Depois, quando foi surgindo o outro lado da história, decidi não tomar partido. Há erros dos dois lados, eles que se entendam.O que aconteceu com Nelson Sargento, no entanto, é tão imperdoável quanto o ocorrido com a velha guarda da Portela ano passado. Se as fantasias da sua família estavam prontas e ninguém foi buscar, que alguém telefonasse, mandasse telegrama, levasse em casa. Não estamos falando de uma celebridade instantânea, estamos falando do grande Nelson Sargento, de um baluarte da nossa música popular! Pelamordedeus! Será que ninguém na escola -- na Mangueira! -- se toca mais para o que representa um nome desses para o país?!
Francamente, Mangueira.
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A essa altura a campeã do desfile já é conhecida, as brigas de hábito já devem estar comendo soltas e o carnaval de 2007 já é passado (feliz Ano Novo!). O relógio da parede, contudo, marca 4h18 de um dia que, teoricamente, é quarta-feira, embora para mim, na prática, ainda seja terça: cheguei em casa dia claro, deslumbrada com o espetacular desfile da Beija-Flor, dormi até o meio da tarde, acordei para separar as fotos e estou, desde então, no computador.Aliás, abre parênteses: se alguém quiser ver as fotos que fiz, estão na Internet em <carnaval.notlong.com>. Usei uma Panasonic Lumix FZ50 e uma Canon SD800, duas câmeras amadoras abaixo da linha dos US$ 500 (lá!). Fecha parênteses.
No meu mundo ideal, Beija-Flor, a mais empolgante, apesar do adiantado da hora, dividiria o campeonato com a Viradouro, maravilhosamente criativa. Salgueiro, que fez o desfile "clássico" mais lindo de todos, e Mangueira, com seu chafariz e sua igreja deslumbrantes, dividiriam o vice-campeonato, e isso porque, até mesmo num mundo ideal, quatro primeiros lugares ficam esquisitos. Outros desfiles que achei excelentes foram os da Unidos da Tijuca, com um enredo tão caro ao meu coração, e o da Grande Rio, com fantasias engraçadas e muito originais.
Mas o que mais me empolgou na passarela foi, quem diria, o jogo de futebol da Viradouro. Uma idéia simples e genial, que arrancava gritos de "Gol!" das arquibancadas sempre que o maluco fantasiado de bola corria baliza adentro.
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Este foi um carnaval diferente, atravessado pela lembrança da violência. Ao contrário de tantos leitores, que escreveram para o jornal sugerindo que fosse cancelado, acho fundamental manter a festa, mesmo no fundo do poço; um povo que, a cada dia, tem menos o que comemorar, não pode abrir mão de um dos seus poucos motivos de orgulho e alegria.Só desejo que, passada a comemoração, não passe também a saudável disposição da população de, enfim, cobrar das autoridades mais ação na questão da segurança pública.
(O Globo, Segundo Caderno, 22.2.2007)
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