1.2.07


Ótimo filme bom,
ótimo filme ruim

Contradição em termos? Nem tanto. Alguns filmes
conseguem ser boa diversão, apesar dos pesares



O ano mal começou, mas já tenho um filme para a lista de favoritos de 2007: "A rainha", de Stephen Frears, que entra em pré-estréia nos cinemas cariocas neste fim-de-semana. Venha o que vier, acho que dificilmente encontraremos igual mistura de inteligência, sutileza e audácia; dificilmente encontraremos atores desempenhando papéis tão delicados; e, sobretudo, dificilmente encontraremos um tour de force como o da insuperável Helen Mirren, que consegue convencer a platéia de que a rainha Elizabeth -- aquela, do grande Big Brother inglês -- é exatamente assim na intimidade.

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Quando assisti a "O diabo veste Prada", achei que o Oscar de melhor atriz já estava no papo. Não gosto muito de Meryl Streep, mas fiquei tão fascinada com sua Miranda Priestly que discordo da premissa de final feliz do filme, quando Andy, a jovem jornalista, deixa, enfim, a revista. Pois para mim, o verdadeiro final feliz já havia acontecido, e era o bom entrosamento entre ela e a irrascível editora.

Acontece que uma coisa é fazer um personagem fictício, ainda que maravilhosamente bem, como fez Meryl Streep; outra é representar uma pessoa que não só está viva como, ainda por cima, é conhecida em todo o planeta. A sensação que tive ao assistir "A rainha" não foi muito diferente da que tenho ao assistir a algum número de circo particularmente arriscado: um misto de aflição, vertigem e admiração incontida.

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"A rainha" não existiria sem o trabalho de Helen Mirren, com certeza, mas, para além desse trabalho, há um roteiro brilhante, uma direção preciosa e toda uma constelação de atores que dão, cada um, o seu show particular. Afinal, a rainha não contracena com personagens de ficção, mas com gente, como ela, saída da vida real (trocadilho, por favor!). Os príncipes Charles (Alex Jennings) e Philip (James Cromwell), um jovem Tony Blair (Michael Sheen) no seu melhor momento, a rainha mãe (Sylvia Syms), todos estão perfeitamente convincentes nos seus papéis.

Imagino que, a essa altura, todos já conhecem a trama, não? Morre Diana, e a família real bate de frente com a opinião pública, que não entende o seu distanciamento da dor geral da nação. Há ótimas frases no roteiro, como quando Tony Blair, perplexo com a falta de percepção da família, exclama, desesperado: "Alguém tem que salvar essa gente de si mesma!" Ou quando Charles desabafa com a mãe, "Por que eles nos detestam tanto?!" e ela, impassível: "Nós não, querido".

A rainha Elizabeth que o elegante filme de Stephen Frears revela é uma mulher firme e ativa, uma escrava do sistema e do dever, que não deixa transparecer sentimentos em público ainda que, às vezes, se permita uma pitada do clássico humour britânico. Não chega a ser simpática, claro, ainda que consiga a nossa simpatia; em alguns momentos, louve-se o diretor, é quase humana. Não sei se serei escalada para escrever sobre "A Rainha" para o "Rio Show", mas, se for, meu Bonequinho não será mistério: ele estará aplaudindo de pé, no auge da empolgação, torcendo para que o resto do ano nos guarde outras surpresas tão boas quanto este filme imperdível.

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Como nem só de filmes excepcionais vivem as telas, acabei indo assistir a "O perfume", em que não punha a menor fé. Tenho uma implicância enorme com o livro, que li assim que saiu, na esteira do sucesso de "O nome da rosa" -- em cuja fórmula, salvo engano, Patrick Süskind se inspirou sem remorsos.

Acontece que o Umberto Eco era original e delicioso de ler, ao passo que "O perfume" era tão pretensioso quanto mal escrito. Mesmo assim, li-o de ponta a ponta, reclamando a cada página virada; a única coisa de que me lembrava era, justamente, essa capacidade de forçar os leitores a irem até o fim, enredados no suspense da trama. Muito pouco, convenhamos, para romance tão cheio de si.

Sair de casa para ver uma versão filmada deste livro esquecível, ainda por cima apodada de "História de um assassino", era, portanto, um ato temerário, aparentemente fadado ao fracasso. Mas não é que o filme é muito interessante, e me prendeu do começo ao fim? Seus defeitos -- basicamente, furos de lógica muito enervantes -- não são defeitos cinematográficos, e sim literários. Se fossem consertá-los, o diretor Tom Tykwer e os roteiristas Bernd Eichinger e Andrew Birkin teriam que filmar um outro romance.

Tirando a história capenga em que se baseia o roteiro, o resto é excelente: cenários, figurinos, fotografia, atores, narração, tudo funciona. Os roteiristas e o diretor fizeram o possível com o material que tinham em mãos. Descartaram o tom "científico" do livro em favor de um clima de farsa, que embrulharam numa primorosa ambientação de época, e inventaram maneiras engenhosas de transmitir ao público as fortes emoções olfativas experimentadas pelo protagonista. Chega a dar pena que tanto trabalho e talento tenham sido postos a favor de obra tão pouco meritória; mas a verdade é que o que nos é apresentado compensa bem a ida ao cinema e o preço do ingresso. O Bonequinho dado pelo Rodrigo Fonseca, que resenhou o filme para o "Rio Show", aplaude sentado; o meu faria a mesma coisa.

(O Globo, Segundo Caderno, 1.2.2007)

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