4.2.07



Chiquinha

Imagine um corpinho miúdo, esguio, ainda ralo de pelos, seguido por um rabinho que poderia servir de cordão de sapato, de tão fino e flexível. Com uma das mãos, você se abaixa e pega esse corpinho na altura da barriguinha, que é quente e mole, parece uma bexiga com água. Cara a cara com a gatinha, a primeira impressão é de que ela está com a língua de fora. O focinho, do lado direito, é vermelho e inchadinho. Até alguns dias ela carregava ali um fio, que unia os cinco pontos que o veterinário deu para fechar o rombo provocado por uma atrocidade: ela foi chutada no meio da rua. Isso tudo aconteceu menos de uma semana antes que eu a conhecesse.

Desde que deixei mamãe sozinha em casa morando com os sete gatos, inclusive o Lucas, vivia uma "crise de abstinência felina". Trata-se de uma severa desordem emocional que acomete, nas palavras da mamãe, "bípedes criados rodeados de quadrúpedes". Eu sofria disso. Passei meses esperando ser escolhida por algum gato -- geralmente é assim que acontece, um gato cruza o seu caminho e escolhe você. Mas na minha frente só passavam macacos prego levados e loucos por bananas e mangas.

Decidi ajudar o destino e fui na feira de adoção organizada pelo pessoal da ONG S.O.S Animal, no Bairro Peixoto, no primeiro sábado de cada mês. Foi lá que conheci esse corpinho SRD preto, cinza e marrom de 289 gramas (e se não for exatamente isso é porque eu é que emagreci, pois subimos juntos na balança), com cinco pontos na cara e uma vontade de explorar o mundo quase incompatível com a maldade que foram seus poucos dias de vida até ali. Apesar da paulada, ela continua acreditando nos bípedes, pois é brasileira, ingênua, e não desiste nunca. Teve ainda a sorte de encontrar a Aline, tremenda protetora que a levou para tratamento e lar temporário. Estou com ela nas mãos, a dez centímetros do meu rosto. Ela teima em arrancar a casquinha dos pontos e fico preocupada com a cicatrização.

Ela, porém, não se preocupa com nada (exceto comida!). Acha que sou sua novela e vive me seguindo pela casa. Pede colo até na hora que estou lavando a louça (OK, não é um momento tão frequente porque a água do mundo está em escassez e eu sou ecologicamente correta ao deixar acumular até 20 cm de altura de pratos, panelas e utensílios na pia -- nunca mais do que isso). Fico com tanta saudade durante o dia que tenho vindo almoçar em casa. A danadinha não pode ver um maxilar de bípede em movimento. Enlouquece pedindo comida (eu só dou ração).

Ontem deu o maior galope felino quando notou que a vasilha que eu carregava nas mão, da cozinha até o sofá, continha aipim assado. Correu e lançou-se com auxílio das unha para cima do sofá num só movimento. De lá, pulou no meu colo e escalou pelo meu peito até quase enfiar o focinho no aipim. Afastei a vasilha até o parapeito da janela. Ela avaliou a distância e arriscou um salto..., que deu errado e fez ela mergulhar entre o encosto e a parede... É uma levada!

Agora tenho que sair para o trabalho. Acho que todo mundo que adotasse um filhote devia ter direito a tirar uma semana de licença maternidade, para lamber a cria. Fico com muita pena dos vários gatinhos que ainda precisam ser adotados e que estão loucos para ter um bípede para chamar de seu.

Que tal você arriscar e ir buscar um desses? (Bia Rónai)
Update: a Bia escreveu esse texto para o blog há bem uns dez dias, mas a vida e o blog andaram meio atropelados. A Chiquinha já está um tiquinho maior, e agora usa um colar elizabetano feito pela Vanor para deixar a ferida em paz. Bia morre de pena de ver a bichinha com um abajur na cara, mas é claro que isso é preferível a uma ferida que não sara nunca, né?

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