27.7.06

Somos pobres, mas somos fresquinhos



Minha primeira compra, agora que voltei para casa, vai ser um quadro-negro. Preciso escrever cem vezes: "Nunca mais reclamo do calor do Rio". Não me lembro mais se, em algum momento da vida, estive na Europa no verão; mas sei, com certeza, que nunca vou me esquecer de dois dias em Hamburgo e três em Paris em que tive saudades daquele arzinho fresco de Manaus e da aragem de Cuiabá -- e em que compreendi, afinal, por que as ondas de calor européias fazem tantas vítimas.

Antes, devo dizer que sempre achei um disparate morrer de calor lá para aquelas bandas. Minha impressão era a de que as vítimas sucumbiam de puro susto, para não dizer frescura, palavra pouco adequada sob todos os aspectos às trágicas circunstâncias; agora, que senti a canícula na pele, literalmente, me penitencio. Não só é possível morrer de calor na Europa, como é espantoso que mais gente não o faça.

Chega a ser assustador verificar como, a esta altura dos desmandos ecológicos, o continente está despreparado para o calor. Vi dúzias de lojas chiquérrimas em Saint-Germain onde as vendedoras, coitadas, trabalhavam com o escasso refresco de um ventilador mirrado voltado em sua direção; ar-refrigerado, e ainda assim fraco, só nas grandes lojas e em alguns cinemas. Os outros desconhecem esta peça essencial à sobrevivência humana. No metrô, nos ônibus e nos trens, o calor da hora do rush , em que milhares de pessoas se apertam nos vagões, só não é o que há de pior porque, além dele, há o cheiro das supracitadas pessoas.

* * *

Na casa das minhas amigas em Hamburgo, pude ver como tudo conspira contra o bem-estar de um europeu no verão, a começar pela decoração, invariavelmente pensada para o frio. Carpetes, cortinas, estofados -- tudo é feito para ajudar aqueles pobres bípedes a atravessarem os longos meses de inverno. As janelas podem ser abertas, claro, mas a idéia não é essa. Todas são decoradas com rendas, vasos de flores e objetos lindos de se ver da rua, mas complicados de tirar do lugar no ocasional dia de calor. Para não falar no pavor que todo bom europeu tem de correntes de ar.

No banheiro não há chuveiro. Há banheira e uma ducha móvel que, nos hotéis, pode ser presa à parede na altura de um chuveiro; mas a simples configuração deste arranjo hidráulico é a prova de que os banhos refrescantes sem os quais não conseguimos sobreviver aqui não fazem parte da vida diária de lá.

* * *

Sob este aspecto, o Rio é uma cidade singularmente bem adaptada às suas circunstâncias. Quando eu era criança e ar-refrigerado ainda era um luxo, os cinemas já tinham aparelhos tão possantes que se davam ao luxo de deixar as portas abertas, para atrair os passantes. Uma das coisas de que eu mais gostava no verão era de passar em frente ao Metro ou ao Copacabana, só para sentir a onda de ar frio que vinha lá de dentro. Táxi sem ar praticamente não existe mais, e nem se imagina uma loja com um mínimo de sofisticação sem refrigeração.

Pois só agora, depois da onda de calor que, há três anos, deixou 15 mil mortos na França, alguns estabelecimentos mais espertos começam a perceber o potencial de marketing de um bom ar-refrigerado. Para mim, acostumada à temperatura polar subártica da refrigeração média carioca, parecia piada ver hotéis e restaurantes de certa categoria com imensas placas anunciando "Climatisé" -- como se todo o conceito do ar-refrigerado houvesse sido inventado ontem, e as mudanças climáticas não fossem realidade já há décadas.

É verdade que, se algum dia nevar no Rio, estamos fritos; mas a hipótese parece remota, sobretudo nesta linda tarde invernal de terça-feira em que escrevo, vendo o termômetro marcar 30 graus lá fora. Acabo de chegar da Lagoa, onde fui dar uma volta de bicicleta e conferir a minha querência. Os filhotinhos de frango d'água que eram pequetitinhos quando viajei vingaram e estão lindos: nunca vi tantos deles por aqui. Os biguás estão ótimos, as duas garças minhas amigas continuam onde sempre estiveram, e o teimoso casal de quero-queros, mais uma vez, dá voltas em torno do campo de beisebol. Burros! Como pretendem que seus filhotes sobrevivam lá?! Acho que vou adotar o mantra que Mamãe usa nesses casos:

-- Darwin, Darwin...

* * *

Para que a vossa cronista possa tomar pé, e resolver a penca de problemas e pendências que se acumularam durante sua ausência, esta coluna sai do ar por duas semanas. Fiquem bem; a gente retoma a conversa no dia 17 de agosto. Até lá!


(O Globo, Segundo Caderno, 27.7.2006)

Nenhum comentário: