20.10.05




Cruzes! O que é que os bichos têm com isso?!

Governadora demonstra completo descaso pela vida
e pelo meio-ambiente em festinha do SIM



Levei um susto quando abri a janela no domingo: a Lagoa estava um lixo, emporcalhada por algo que, do meu ponto de vista, parecia ser mortandade de peixes ou uma suspeita espuma branca, recolhida com uma rede. Desci para ver o que estava acontecendo: num primeiro momento, respirei aliviada. Não era nem mortandade nem espuma tóxica. Eram os restos daquele criativo evento da turma do SIM, que, com as bênçãos da governadora, jogou na Lagoa, como se esta fosse a lata de lixo do Palácio Guanabara, milhares de cruzes de isopor, representando, segundo os organizadores, "os mortos por armas de fogo".

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O alívio durou pouco. O material estava se desfazendo, e a água, coitada, já de si bastante poluída, estava coalhada de pedaços de isopor, risco certo para os peixes, biguás, frangos d'água e tantos outros habitantes da área que nada têm a ver com a demagogia que cerca este referendo, e que agora pagarão com suas vidinhas verdadeiramente inocentes pela opção da governadora.

Em vez de orar pelos mortos, ela faria melhor chamando às falas o senhor seu marido, que, como ex-governador e ex secretário de Segurança, nada fez para mudar o tenebroso quadro da violência no estado; também não lhe faria mal se, como governadora que é, se recolhesse ao palácio para meditar a respeito da quantidade de vidas, humanas e animais, que já se perderam devido à inércia do governo.

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Na verdade, como moradora desta cidade, sinto-me pessoalmente ofendida cada vez que qualquer autoridade responsável pela "nossa segurança" vem a público deitar falação, como se isso -- a nossa segurança -- existisse.

Será que acham que somos todos idiotas?! Acham que ignoramos que circulam, às nossas custas, em carros blindados, cercados de seguranças?! Acham que não vemos o que acontece à nossa volta, que engolimos as suas mentiras, que não nos damos conta da sua covardia?! Acham que não nos ressentimos de não podermos usar a nossa cidade, de não podermos ter uma bicicleta melhorzinha, de usar a corrente com o santinho ou um relógio mais bonito? Acham que gostamos de andar com os vidros dos automóveis permanentemente cerrados, ou de ver todos os bares e restaurantes fechados, e de ter que voltar para casa quando os argentinos (logo eles!) mal começam a se preparar para sair para a noite esplendorosa de Buenos Aires?!

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Pois domingo, voltando ao começo desta crônica, a governadora -- como se governadora não fosse, e não tivesse nada a ver com a Beirute que se forma em cada esquina, com a Bagdá em que se transformaram as linhas Vermelha e Amarela -- lá se foi, toda de branco, compactuar com a poluição da Lagoa.

Cuja despoluição, por sinal, deve à população desde que assumiu.

Aparentemente achou lindo o horrendo monte de isopor, pegou um barco e, no meio das águas, abriu caixas onde, desde cedo, estavam fechadas pombas brancas, que por pouco não morreram de calor e falta de ar. As aves estavam tão enfraquecidas que caíram direto na água, e só não se afogaram graças ao socorro prestado por populares em barcos e pedalinhos. Algumas estavam com asas partidas; outras foram encontradas, de madrugada, conforme noticiou a coluna Gente Boa, abandonadas dentro de uma das caixas, com as asas cortadas.

Pelo menos duas leis foram infringidas pela governadora e pela sua "turma do bem" no famigerado manifesto: o Decreto-Lei 24.645, que define maus-tratos contra animais, e que, entre outras coisas, diz, explicitamente, que é crime "abandonar animal doente, ferido, extenuado ou mutilado, bem como deixar de ministrar-lhe tudo o que humanitariamente se lhe possa prover, inclusive assistência veterinária"; e a Lei Federal 9.605, de Crimes Ambientais, que condena "provocar, pela emissão de efluentes ou carregamento de materiais, o perecimento de espécimes da fauna aquática existentes em rios, lagos, açudes, lagoas, baías ou águas jurisdicionais brasileiras".

Isso para não falar da lei estadual que proíbe a apresentação de animais em circos ou espetáculos no Rio de Janeiro, sancionada pela própria governadora há quatro meses e que, ainda que não diga nada a respeito da tortura de pombos com fins eleitoreiros, há de ter alguma cláusula que, interpretada por um bom advogado, condene esta barbaridade.

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Ser a favor da vida é um pouco mais complicado do que botar uma camiseta branca e votar SIM. Ser a favor da vida é compreender que todos fazemos parte de um único mundo, neste momento mais ameaçado do que nunca. Permitir que uma área já tão fragilizada como a Lagoa seja alvo de uma agressão gratuita, e assistir impassível à agonia de dezenas de aves, é não ter a menor idéia do que seja a vida no seu sentido mais amplo.

Na terça, as águas ainda estavam cheias de isopor, que era comido por biguás e frangos d'água(como este que fotografei), e que podem vir a morrer disso. Nada a estranhar. Tudo o que esses governadores fazem é vulgar, sinistro, malfadado.

(O Globo, Segundo Caderno, 20.10.2005)

Aconteceu uma coisa chata com esta coluna. Eu dou uma escrita geral, depois revejo, corto, conserto, arrumo. Pois não é que, desta vez, esqueci de salvar a versão mais recente -- que me mandei por email, e que aqui está -- na forma do jornal?! Não sei se foi cansaço de ir e vir de São Paulo ou pura distração, mas o fato é que a versão impressa está ligeiramente diferente -- e pior. Chato, isso.

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