2.10.03



A cabra, a capivara e algumas antas

Um dia, vinha eu calmamente andando pela Visconde de Pirajá quando, na esquina da Aníbal de Mendonça, vi uma cabra em cima de um muro. Isso foi há muito tempo. Tanto, tanto, que a gente podia andar calmamente pela Visconde de Pirajá. Ali, onde hoje há um hotel, uma casa com jardim e quintal vivia seus últimos dias. Vocês aí nem eram nascidos. Nós achávamos Brizola o pior governador de todos os tempos, sem saber o que o destino nos reservava. Ainda assim, posso garantir que uma cabra em cima do muro não era um acontecimento rotineiro em Ipanema.

Ela era branquinha e amistosa, e tentava alcançar as folhas de uma árvore, equilibrando-se no muro com a facilidade e a elegância da espécie. Fiquei maravilhada com o espetáculo, e feliz em estar tão bem posicionada para assistir. Não tinha dúvida de que, em breve, haveria um aglomerado no local.

Pois sim! Durante todo o tempo da refeição, que durou uns 20 minutos, fui a única a achar que cabra em cima de muro, numa das esquinas mais movimentadas de Ipanema, merecia atenção. A multidão ia e vinha como sempre, carregando sacolas e acenando para ônibus e táxis. Ninguém parou, ninguém manifestou espanto, ninguém sequer notou a cabra. Senti uma vontade louca de parar as pessoas, de sacudi-las:

— Vejam, há uma cabra em cima do muro! Em plena Visconde de Pirajá! Uma cabra! De verdade!

Como sou tímida, fiquei só na vontade. Quando a bichinha acabou de comer e sumiu por trás do muro, fui embora, encantada com o animal e perplexa com os meus semelhantes, que não tinham percebido o insólito da cena. Até hoje guardo a lembrança dessa cabra carioca como uma das coisas bonitas que me foi dado ver.

* * *


Pois domingo passado, caminhando pela Lagoa, encontrei finalmente a capivara. Quando começaram a falar nela, achei que era personagem de mais uma lenda urbana, prima distante do monstro do Lago Ness. Logo, porém, fotos e testemunhos me fizeram mudar de idéia. Passei a levar a máquina fotográfica nas caminhadas, de olho no manguezal.

Os dias se passaram e acabei deixando a capivara pra lá. E no domingo, como já era tarde, deixei pra lá também a câmera. Não deu outra! À altura do Hospital da Lagoa, noite caindo, lá estava ela, gorda, lustrosa, refocilando na lama em toda a sua glória. Um rapaz que vinha de bicicleta parou ao meu lado, igualmente encantado. Conversamos um pouco.

— Deviam levar para o zoológico. Aqui não vai durar nada, daqui a pouco alguém mata para comer.

Concordei, em princípio, embora tenha dúvidas em relação à idéia do zoológico: animal solto é outra coisa. Enquanto isso, várias pessoas passavam batidas pela capivara, exatamente como, tantos anos antes, passavam pela cabra. Diálogo de duas moças:

— Não é cachorro, não, deve ser aquele bicho que falaram, como é o nome?

— Paca, né não?

— É, uma coisa assim...

Quer dizer: nem sabendo que ali havia um bicho diferente pararam! O rapaz da bicicleta e eu nos entreolhamos, diante de tal falta de interesse. Depois nos despedimos, e desci devagarinho para a beira d'água, para ver a capivara mais de perto. Ela não se incomodou com a minha presença. Olhou para mim brevemente, e voltou à sua magnífica imundície.

Rolava no chão contente, esfregando as costas. Parou um pouco, bebeu água, comeu mato e voltou à lambança. É um bicho grande. Deve ter quase um metro, uma cara muito engraçada. Como todos nós, gosta de se divertir: dava botes nos martins-pescadores, que fugiam alarmados, aos gritos, a cada movimento dela. Mas não tinham por que se preocupar, os bobos. As capivaras, maiores roedores do mundo, são herbívoras.

Quando minha nova amiga — já a considero assim — mergulhou para nadar até o outro lado da saída de esgoto, voltei para a calçada, onde um segundo rapaz, também de bicicleta, estava parado observando.

— É a capivara, é?

Ele ouvia falar nela há tempos, e nunca a havia encontrado.

— Maravilhoso ver a natureza assim!

Esse era dos meus! Animados, conversamos sobre a vida na Lagoa, sobre os biguás e as garças e tudo o mais em volta.

— Coitada dessa capivara. Deve estar muito solitária. Deviam botar outras aí. Já pensou, um monte de capivaras, como as cotias do Campo de Santana?

Gostei da idéia: uma colônia de capivaras na Lagoa! Há provavelmente mil contra-indicações ecológicas, e até morais e religiosas, mas que seria formidável encontrar capivaras todos os dias, lá isso seria.

— Poderia virar uma grande atração turística, imagine quantas pessoas viriam para cá para ver as capivaras.

Será que viriam? Será que veriam?

Nisso, a capivara mergulhou e sumiu por um tempo. Quando a vi novamente, ia lá na frente, pronta para chatear mais um grupo de pássaros. O rapaz subiu na bicicleta e ficou olhando. Eu continuei a caminhada, e completei a volta da Lagoa em 2h45m. De noite, ouvi no “Fantástico” que um corredor do Quênia chamado Paul Tergat fez a maratona em 2h04m55s. Esse cara não olha capivara.


(O Globo, Segundo Caderno, 2.10.2003)

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