20.3.03



A marcha da insensatez

Pronto: cá estamos nós, mais uma vez reféns da nossa própria estupidez, imperfeitos que somos, incapazes de tirar da História as lições mais elementares; cá estamos nós, mais uma vez empenhados em nos matarmos uns aos outros e em cultivar o ódio como se fosse uma flor rara, porque, em última instância, é ele que justifica a barbárie.

Digo “nós”, naturalmente, como coletivo planetário, como bípedes inviáveis que somos, incapazes de enxergar um palmo diante do nariz; mas é claro que quero dizer “eles”, pondo nisso uma indisfarçável carga de ressentimento. Provando, portanto, que pertencemos de fato à mesma espécie.

Dick Cheney, Condoleeza Rice, John Ashcroft, Colin Powell, Saddam Hussein, Donald Rumsfeld — todos são seres humanos, como qualquer um de nós. Até George W. Bush, dizem, é humano. Como Michael Jackson, ou Fernandinho Beira-Mar.

Deprimente? Bota deprimente nisso! Sei que a esses exemplos se poderiam facilmente contrapor outros tantos do que a espécie tem de melhor: Bach nos redimiu, e ainda vai redimir, por muitos e muitos séculos, como Shakespeare, Giotto ou Fernando Pessoa. Mas, neste específico momento do tempo registrado, só encontro motivos para ter uma profunda e inerradicável vergonha de ser humana.

* * *

Independentemente do resultado “oficial”, os americanos já perderam a guerra. Podem acabar com o Iraque, reduzir Bagdá, Níneve e Samarra a cinzas, liquidar Saddam Hussein, sua família, amigos e animais de estimação, varrer a população civil do mapa e, de lambuja, trazer Bin Laden vestido de odalisca e preso por uma coleira no pescoço para um tour amplamente televisado do Ground Zero; podem até ter um surto tardio de consciência e recolher todas as tropas do Golfo Pérsico — mas, a esta altura, nada do que façam ou deixem de fazer poderá alterar o resultado do placar.

Em apenas dois anos, como já observaram tantos comentaristas internacionais, George Bush e o cartel que representa conseguiram transformar a gigantesca onda de simpatia e solidariedade que se formou em torno dos EUA logo após o atentado numa tsunami de antiamericanismo de proporções nunca vistas.

Conseguiram também transformar uma imprensa antes forte, independente e admirável numa massa tão amorfa e subserviente que Art Spiegelman, o melhor desenhista da “The New Yorker”, ainda uma das melhores revistas americanas, não agüentou o clima e pediu o boné, depois de dez anos de magníficos serviços prestados. Diretamente, aliás, à própria mulher, a diretora de arte Françoise Moulay — que permanece a bordo como, diz, “uma espécie de refém”.

Resultado? O americano médio está, hoje, mais alienado e desvinculado do resto do mundo do que jamais esteve. Ele não tem idéia de como o resto da Humanidade vê o seu país e os seus governantes e não se sente mais seguro em lugar algum do planeta — exceto, talvez, no porão de casa. Onde, com seu consentimento, é vigiado dia e noite pelo governo, enquanto maldiz a Rússia, muda o nome das batatinhas e joga fora o champanhe que ainda poderia lhe trazer um pouco de alegria.

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A verdade é que nem só em sangue e construções demolidas se contam as derrotas. Será preciso muito tempo, muita paciência e muita diplomacia para romper o medo, o isolamento e a insegurança em que vivem os Estados Unidos de Bush.

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Isso não significa, logicamente, que se viva melhor no Iraque de Saddam Hussein — ou, de resto, em qualquer país do mundo árabe, pelo contrário. Mas que derrota se pode inflingir a quem já está derrotado? A miséria não é boa conselheira; as condições de vida da população iraquiana são tão precárias que qualquer carga extra de desgraça que se lhe lance por cima pode ter conseqüências imprevisíveis. Não há poder igual ao de quem não tem nada a perder, nem loja de louças tão delicada quanto a explosiva região que está na mira de Bush.

É uma ironia do acaso que o animal que representa seu partido seja um elefante.

(O Globo, Segundo Caderno, 20.3.03)

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