14.10.04




Tempos ruins, pessoas
boas: lembranças


Na Brasília dos anos 70, respeitar sertanistas como
Apoena Meirelles era mais fácil do que entendê-los



Fui morar em Brasília em 1972 e só não fui infeliz para sempre porque, antes que a década seguinte começasse para valer, já estava de volta ao Rio. Detestava aquele barro vermelho que grudava em tudo, a aridez da paisagem, a falta de humanidade das superquadras; não estava preparada psicologicamente para morar em endereços chamados W3 e SQS, para depender de automóvel para as mínimas coisas e para conviver com os protagonistas e figurantes de uma ditadura que me oprimia. No dia-a-dia deste convívio, mais do que a brutalidade do regime me chocava a brutalidade das pessoas, a grossura das autoridades, a sua falta de educação, o seu despreparo, a insensibilidade ampla, geral e irrestrita.

A famosa falta de esquinas nem me fazia tanta falta assim. Naquela época o Rio ainda era uma cidade onde a gente andava a pé com calma, e saía para passear na rua, à toa, para bater perna, ver vitrines, por os assuntos em dia, espairecer. Em algumas esquinas havia barzinhos onde se parava para beber alguma coisa ou tomar café em pé com os amigos; mais ou menos como hoje, com a diferença que só se tinha taquicardia quando se via o namorado passando no ônibus ou se olhava para o lado e se dava de cara com uma lenda viva tomando cafezinho. Um grupo de moleques correndo era só isso, um grupo de moleques correndo, não um arrastão. E arrastão, por sinal, era só um tipo de pesca, e um grande sucesso da Elis Regina.

A esquina não era uma referência geográfica, mas existencial. Para mim não era a esquina urbanística que fazia falta na Brasília dos anos 70, mas tudo aquilo que fazia a vida de uma cidade, especialmente de uma cidade civilizada. Amigos que até hoje moram lá e amam perdidamente os seus pagos ficam sentidos com a minha visão, mas a percepção do espaço é sempre pessoal e, lógico, influenciada pelas circunstâncias da vida e dos gostos de cada um. Viver no depósito de autoridades boçais, milicos perigosos e funcionários públicos contrariados que era a Brasília de então foi o lado escuro da minha existência, a parte amarga que me foi dada para que eu pudesse apreciar, devidamente, cada dia que veio depois.

É óbvio que, no meio daquela escuridão toda, existiram algumas luzes; muitas, até, se eu pensar nos amigos e nas descobertas que a cidade me proporcionou, entre elas a visão de um Brasil que ia muito além daquele que se via do Rio de Janeiro. Em Brasília descobri, por exemplo, a melhor de todas as tribos indígenas -- a dos sertanistas, como os irmãos Cláudio e Orlando Villas-Boas e Apoena Meirelles, assassinado no último domingo. Volta e meia eles estavam lá, resolvendo coisas na Funai.

Eu trabalhava em outros setores e não tinha convívio contínuo com eles; mas todo mundo se conhecia naquela capital ainda pequena, e todos os caminhos levavam aos mesmos lugares. Encontrá-los era uma aventura intelectual de alta voltagem. Eu era fascinada pelos Villas-Boas, já então verdadeiros mitos, mas, naturalmente, me sentia mais à vontade com Apoena -- pertencíamos à mesma geração. A essência da minha lembrança dele é, paradoxalmente, uma sucessão de discussões acaloradas, com poucas chances de entendimento.

Explica-se. Nascido na selva, ele era um defensor feroz e intransigente dos índios, ao passo que eu, cética criatura urbana, sempre vi com desconfiança a questão indígena. Do meu ponto de vista, era muito difícil, quando não impossível, entender certas posições suas, invariavelmente marcadas pela parcialidade irracional dos apaixonados; mas, até por isso, não havia como não gostar dele e, sobretudo, como não respeitá-lo.

A verdade é que, apesar de tantas vezes discordar dos sertanistas, sempre tive a maior admiração pelos que conheci. Pessoas bem preparadas, em que a formação humanista se aliava a uma coragem extraordinária, eles combatiam, todos, o bom combate; afinal, se eventualmente erravam, era por idealismo e dedicação, ao contrário dos sórdidos poderosos que enfrentavam.

Voltei para o Rio em 1981. Nunca mais vi nenhum sertanista ? mas, às vezes, tinha notícias daqueles meus antigos conhecidos pelos jornais. Ainda há pouco, no caso dos garimpeiros assassinados, lá estava o Apoena, mais uma vez dando razão aos índios -- e eu, do lado de cá da página, ainda discutindo, em pensamento:

-- Caramba, rapaz, se toca, não há inocentes nessa história!

Ainda assim, há heróis; e Apoena Meirelles foi um deles.


(O Globo, Segundo Caderno, 14.10.2004)

Nenhum comentário: