1.4.04





O dia em que não matei o presidente

-- Caramba! — exclamou um amigo quando viu o Lula tão pertinho, nas minhas fotos. — Se você quisesse, podia ter matado o presidente...

Ao longo da semana, várias pessoas que visitaram o meu fotolog me fizeram esta curiosa observação: durante a entrega do prêmio Faz Diferença, do GLOBO, lá no Copacabana Palace, eu podia ter matado o presidente. Nenhuma dessas pessoas é particularmente anti-Lula, nem eu sou um modelo de pessoa particularmente feroz, à eterna espera do momento ideal para detonar as autoridades presentes. Mas ter feito meia dúzia de fotos Dele me pôs, quem diria, na categoria de pesadelo de guarda-costas.

Fiquei intrigada com a reação. Já fiz fotos de toda a espécie de personalidades, de artistas plásticos a bailarinos, passando por atores internacionais antipáticos e até políticos, mas nunca ninguém jamais me disse que eu podia ter matado qualquer delas. Será que o presidente, mesmo num país que não tem qualquer tradição no ramo, é, de repente, o Grande Alvo? Engraçado: se eu tivesse feito uma entrevista com o presidente, ou até tomado café a sós com o presidente, como fez o Franklin Martins na quarta-feira, ninguém diria nada.

Não, a questão não parece estar na proximidade, mas no uso da máquina. Mais do que isso, no uso pessoal dela, na captura do instantâneo que não se espera. Se eu fosse fotógrafa profissional, e lá estivesse com dez quilos de equipamento, ninguém diria nada também. Mas, ponham em cena uma ainda misteriosa — por diminuta? — câmera digital, e as coisas mudam instantaneamente — sem trocadilho — de figura.

Vá entender!

* * *

Quando o presidente Jimmy Carter esteve no Brasil, em 1978, eu trabalhava em Brasília, e fui destacada para a cobertura. Os americanos, sempre mais preocupados com assassinos de presidentes do que nós brasileiros, revistaram todos os jornalistas e me levaram um estilete que, na época, se usava muito para cortar papéis em diagramação. O diabo do estilete era importado, caro, complicadíssimo de comprar e não me foi devolvido.

Mandei uma carta indignada para a embaixada, reclamando da apropriação indébita e, para minha surpresa, dez dias depois recebi um estilete novinho em folha. Com um estojinho de lâminas sobressalentes.

Mas, estilete ou não estilete, o fato é que eu ou qualquer dos meus colegas, seguindo a lógica da câmera digital, poderíamos ter matado facilmente o presidente Carter. Apesar da ditadura, os tempos eram menos paranóicos, e em pelo menos duas ocasiões ele atravessou trechos cercados de populares, apertando mãos aqui e ali. A minha, inclusive: eu havia me plantado em meio à multidão, estrategicamente, para surpreendê-lo com uma ou duas perguntas fora do script.

Não me lembro mais do que perguntei ou do que ele respondeu, mas me lembro até hoje do orgulho que senti quando, no dia seguinte, o curto diálogo virou manchete como a entrevista exclusiva que, afinal, não deixava de ser. Como se vê, não era tão difícil contentar jovens jornalistas numa época em que fazia parte da rotina da profissão passar horas de pé diante do Ministério da Justiça ou do Forte Apache apenas para ouvir o perpétuo “Nada a declarar” das autoridades.

* * *

O Zuenir reclamou do terno e da gravata, eu — que vivo de jeans e camiseta — reclamei da roupa chique; mas foi muito legal a festa dos prêmios do GLOBO. Foi bom ver juntas tantas pessoas tão talentosas, tão dedicadas, tão brasileiras. Foi bom ouvir o português perfeito carregado de sotaque no discurso do professor Radovan Borojevic, especialista em células-tronco; bom ver o auditório aplaudindo de pé o bravo coronel Erir Ribeiro; bom ter a honra de entregar o prêmio a um artista tão merecedor como Aderbal Freire-Filho.

Valeu a pena sair do meu modelito nerd habitual para conhecer, afinal, o estilista Oskar Metsavath, da Osklen, a quem sempre admirei à distância pela criatividade e pelo apoio dado a jovens atletas; abraçar Luiz Schwarcz, um dos meus editores favoritos; e me emocionar com a presença digna e elegante de dona Gilda Vieira de Mello, mãe do alto comissário Sérgio Vieira de Mello, cuja morte no Iraque comoveu o mundo.

Foi, enfim, uma bela ocasião para celebrar o país e as pessoas que fazem o país. Apesar de todos os problemas o Brasil é imbatível no coração da gente; e é ótimo conferir, entre um juiz venal aqui e uma quadrilha de pitboys ali, que a paixão da gente ainda tem tanta razão de ser.

* * *

Apesar das muitas fotos do presidente, a minha favorita da noite foi esta, do José Dirceu, ao lado de dona Lily Marinho, prestando atenção à Maria Rita. Mas a coleção completa pode ser vista em public.fotki.com/cronai /oglobo.


(O Globo, Segundo Caderno, 1 de abril, 2004)

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