Em Chernobyl, os relógios não contam as horas
"Esta é a nossa estrada. Nós vamos ver cada vez menos carros e outros sinais de civilização à medida em que nos aproximarmos da Cidade Fantasma. A terra vai ficando mais barata e as estradas vão ficando melhores... exatamente ao contrário do que acontece em qualquer outro lugar do mundo. É um presságio do que está por vir.”Estamos na estrada com Elena, vinte e tantos anos, motoqueira, moradora de Kiev, Ucrânia. Às vezes, ela aponta sua Kawasaki Ninja rumo ao Norte, e viaja no tempo para abril de 1986. Seu destino geográfico é a zona contaminada em torno da usina de Chernobyl, palco do pior desastre nuclear que já se viu.
“O tempo parou na Cidade Fantasma” — escreve em seu website. — “Talvez seja porque os relógios aqui não contam as horas. Contam apenas níveis de radiação.”
Além do primeiro nome e do número de uma caixa postal, Elena revela muito pouco a respeito de si mesma. Filha de um físico nuclear envolvido em pesquisas sobre o acidente, cresceu à sombra de Chernobyl, tem bons conhecimentos de física e de biologia, e compara suas viagens de moto através da zona morta à travessia de um equilibrista na corda bamba:
“Num dos lados da vara com que se equilibra está a intensidade da emissão dos raios gama; na outra ponta, está o tempo de exposição aos raios. O arame, porém, também está coberto por uma poeira escorregadia, e é nela que reside o maior perigo.”
Elena não tira os olhos do contador Geiger e, por precaução, viaja sempre sozinha, pelo meio da estrada, para não correr o risco de respirar a tal poeira, que seria eventualmente levantada por outros veículos:
“Às margens da estrada, a radiação já é duas ou três vezes maior do que no meio. Se você se afastar um metro, será quatro ou cinco vezes mais intensa. A radiação está no chão, na grama, nas maçãs e nos cogumelos, mas não é retida pelo asfalto, o que torna viagens pela área relativamente seguras.”
O impacto do website simples, sem maiores sofisticações tecnológicas, é tão extraordinário quanto universal. Suas 28 páginas de texto e de fotos atraíram, em menos de um mês, cerca de dois milhões de visitantes. Num fenômeno típico da internet, cópias fiéis, chamadas “espelhos”, têm aparecido por toda a rede, graças a internautas dispostos a fazer com que o conteúdo chegue aos quatro cantos da Terra. Resultado: calcular o seu número exato de leitores é, hoje, tão difícil quanto calcular o número exato de vítimas de Chernobyl.
“Quantas pessoas morreram de radiação? Ninguém sabe — nem por alto. Os números oficiais vão de 300 a 300 mil mortos, e outras fontes chegam aos 400 mil. A conta final não será conhecida durante as nossas vidas e, talvez, sequer durante as dos nossos filhos.”
A estrada, percorrida por Elena no começo da primavera, passa por aldeias abandonadas, casebres em ruínas, bosques desertos. A desolação é geral, e inquietantemente assustadora. Além da própria Elena e dos guardas que impedem a passagem de pessoas não-autorizadas nos pontos de entrada da zona morta, o único outro bípede que se vê nas fotos é um homem numa carroça:
“Ele é um dos 3,5 mil que ou se recusaram a deixar a área ou voltaram para as suas aldeias depois da fusão nuclear em 1986. Admiro esses indivíduos, que são, todos, filósofos à sua maneira. Quando você pergunta se não têm medo, respondem que preferem morrer de radiação em casa a morrer de saudades numa terra estranha. Eles comem a verdura das suas próprias hortas, bebem o leite das suas próprias vacas e se declaram saudáveis... mas o velho da carroça é um entre apenas 400 sobreviventes. Talvez venha a se juntar, em breve, aos seus 3,1 mil vizinhos, que descansam para todo o sempre na terra dos seus adorados lares.”
Elena, boa e atenta fotógrafa, é, principalmente, ótima escritora, num inglês fluente cujas pequenas falhas vem corrigindo aos poucos. Seu texto, informado e informativo, claro e desassombrado, revela perplexidade diante da tragédia e, sobretudo, uma profunda humanidade. Vai ser surpresa para mim se não acabar em livro com lançamento mundial e/ou documentário do Discovery.
“A área de Chernobyl permanecerá contaminada pelos próximos 48 mil anos, mas humanos poderão repovoá-la dentro de uns 600 anos. Os especialistas dizem que, até lá, os elementos mais perigosos terão desaparecido, ou terão se diluído suficientemente pelo resto do mundo. Se o governo dispuser do dinheiro e da vontade política necessários à pesquisa científica, é possível que se descubra alguma forma de limpar ou neutralizar a contaminação um pouco antes. Caso contrário, nossos distantes descendentes terão de esperar até que a radiação volte a níveis toleráveis. De acordo com as melhores estimativas, isso vai acontecer daqui a 300 anos... ou, para outros cientistas, só daqui a 900. Eu acho que serão 300, mas as pessoas sempre dizem que sou muito otimista.”
(O Globo, Segundo Caderno, 8.4.2004)
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