13.2.02




ARIANO
(no momento em que
Suassuna virou moda)





Ante-ontem, o Império Serrano desfilou homenageando Ariano Suassuna; no domingo, o JB publicou este texto do Millôr:

DUAS OU TRÊS COISAS QUE EU SEI DELE

O passado, todos sabem, é uma invenção do presente. Quem busca datas para os acontecimentos já os está deturpando. Além do que, de datas eu não sei mesmo. Por isso afirmo que foi no fim dos anos 50 que me levantei entusiasmado e invejoso, no Teatro Dulcina, na Cinelândia, para aplaudir O auto da compadecida, de Ariano Suassuna. Ao meu lado, fazendo o mesmo, Silveira Sampaio, médico que há pouco tinha abandonado a medicina pra se transformar no autor de algumas peças leves e refinadas, que dirigia e interpretava. Terminado o espetáculo, fomos os três pra minha casa -- já na praia de Ipanema, idílica então -- e ficamos conversando, varando a noite. E o dia foi amanhecendo por trás das montanhas Dois Irmãos, ainda livres do Hotel Sheraton, da favela do Vidigal, dos sinais luminosos, do tráfego ensandecido, enfim, da civilização. Só com raparigas em flor já caminhando cronologicamente pro encontro fatal com Vinícius e Tom.

Não me lembro de uma só palavra de Ariano. Ficou-me a forte impressão. Resíduos. A memória da memória.

Quantos encontros tive com Ariano desde então? Não mais de dez. Mas em nossa profissão, lavradores do nada, o contato é permanente. E, se fiz alguma coisa pra decepcioná-lo, não sei. Ele não fez nada que me decepcionasse. Não lhe cobro nem a Academia. Merece todas as imortalidades, até mesmo essa, pechisbeque (corrida ao Aurélio).

Meu outro e imediato contato com Ariano foi em O santo e a porca. A pedido de Walmor Chagas e Cacilda Becker fiz o cartaz para a peça, cartaz que me defrontou um dia, pra minha vergonha -- sempre tenho vergonha do que faço, meu sonho é ser autor morto, e vocês não perdem por esperar -- num dos caminhos do aterro. Nem sei se Ariano jamais viu ou soube desse contato.

Enquanto isso Ele se expandia. Professor nato -- não há nada mais fascinante do que didática e a dele é excepcional -- e criador compulsivo, se fez batalhador de causas culturais populares, exibiu em espetáculos teatrais sua capacidade de representar -- é um grande showman, quem não viu não sabe o que perdeu --, fez-se um desenhista primoroso e escreveu A pedra do reino, que coloco facilmente entre os 10 maiores romances brasileiros (nunca me arrisco a dizer que alguma coisa é a maior), incluindo aí Guimarães Rosa e excluindo Machado de Assis, quem quiser que me contradiga.

Uma das outras vezes em que estive com meu herói foi no Recife, Instituto Joaquim Nabuco, onde ele, enquanto aguardávamos minha oportunidade de incitar o povo com meu verbo flamante, recitou o primeiro poema (soneto) que escrevi na vida, aos 20 anos (já tive!, posso provar), e que eu recito aqui pra vocês verem que há que ter memória:

Penicilina puma de casapopéia
Que vais peniça cataramascuma
Se partes carmo tu que esperepéias
Já crima volta pinda cataruma.

Estando instinto catalomascoso
Sem ter mavorte fide lastimina
És todavia piso de horroroso
E eu reclamo - Pina! Pina! Pina!

Casa por fim, morre peridimaco
Martume ezole, ezole martumar
Que tua pára enfim é mesmo um taco.

E se rabela capa de casar
Estrumenente siba postguerra
Enfim irá, enfim irá pra serra.

No dia seguinte, autor ingrato, almoçando com ele, cobrei ter errado uma palavra no soneto. ''Errei não'', voltou ele. ''Corrigi. Você é que errou a métrica.''

Somos do tempo em que havia métrica.

E a última vez em que estivemos juntos foi o momento mais extraordinário. Na casa de nosso comum amigo José Paulo Cavalcanti, jornalista, escritor e causídico (a ordem é a do leitor) numa praia dionisíaca de quatro quilômetros de extensão, em Porto de Galinhas, Pernambuco. Ficamos lá horas, conversando dentro dágua, num mar indizível mas que vou tentar dizer.

A meu lado, dentro das águas claras, mansas e verdes, a presença absolutamente surreal de Ariano, secundado por (apertem os cintos!) Luís Fernando Veríssimo. E eu ali, galera, me boquiabrindo diante da loquacidade brilhante de Suassuna e me boquifechando diante do mutismo perturbador de Veríssimo, mostrando, como sempre, que não é homem de jogar conversa fora.

Ao redor, a meteorologia no seu melhor, enviando leves pancadas de chuva em momentos precisos, e vento sempre fresco, com dezoito nós e alguns laços -- os da amizade.

A foto acima fiz num outro encontro com Suassuna; o Instituto Moreira Salles havia acabado de lançar este livro, e Millôr resolveu brincar com os seus (dele) óculos e a foto do Ariano.

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