24.9.09

Um equilíbrio delicado



Quando descobri Thrity Umrigar, perto do Natal de 2006, ela já estava no alto da lista de mais vendidos, com um romance excepcional chamado “A distância entre nós”. Curiosamente, o livro vendeu mais no Brasil do que nos Estados Unidos, onde foi lançado, e arrisco o palpite de que isso se deve ao universo doméstico indiano, mais próximo de nós do que dos norte-americanos. As personagens principais são Sera e Bhima, patroa e empregada, e embora o mundo em que vivam seja infinitamente mais cruel e esmagador do que qualquer cenário contemporâneo brasileiro, o convívio entre as duas nos é familiar. Isso confere ao romance um nível de realismo e de credibilidade que talvez escape aos leitores de um país onde, há tempos, mesmo os mais abastados têm que se virar sozinhos.

* * *

Já pensei nisso bastante porque, durante anos, um dos meus melhores amigos foi um americano muito, muito rico, que morava numa casa digna de capa de revista de arquitetura. No Brasil, teria no mínimo duas empregadas e um jardineiro; lá, tinha uma faxineira que vinha duas vezes por semana e um jardineiro que aparecia quando necessário. Nunca entendi esse arranjo, que deixava uma carga gigantesca de serviço nas suas costas. Um dia, perguntei por que não contratava pelo menos uma empregada fixa, já que dinheiro não faltava. Ele me respondeu com outra pergunta:

-- Como é que vou viver com alguém dentro de casa?

Reação compreensível para quem preza a sua solidão, mas ali havia espaço suficiente para que pelo menos meia dúzia de pessoas convivessem sem se encontrar nunca.

-- Eu não sei como lidar com uma empregada que viva em casa, não tenho a menor idéia de como espera ser tratada, -- explicou. -- Quando alguém vem fazer um trabalho fixo é diferente, a relação é apenas comercial.

A situação se repetia nas casas de todos os seus conhecidos. À primeira vista, parecia sinal de grande desenvolvimento: ninguém precisava mais trabalhar para ninguém naquele oceano de prosperidade. Os ricos que se virassem, cozinhassem suas próprias refeições e lavassem seus próprios banheiros. A verdade, como sempre, era mais complexa. A faxineira mexicana tirava um dinheiro bom no fim do mês, mas me contou que preferiria mil vezes trabalhar fixo numa casa só. Poderia dividir as tarefas com mais calma ao longo da semana em vez de se esfalfar feito louca todos os dias. Economizaria aluguel, eletricidade, telefone, alimentação e combustível. Não precisaria acordar tão cedo para atravessar o engarrafamento. Moraria melhor. Teria de lidar com um só patrão, em vez de lidar com cinco ou seis. Estava certa, claro.

O fato é que, com o tempo, acabei com pena daqueles milionários que, com tanto dinheiro, não tinham sequer o conforto singelo que nós temos de acordar e não precisar fazer a cama. Fiquei imaginando uma espécie de agência de empregadas que funcionasse também na mão inversa, ensinando aos patrões como tratar as empregadas, e, ao mesmo tempo, aproximando pessoas compatíveis. Foi a única idéia de negócios que jamais tive, com exceção da óbvia livraria em Paris, sonho de dez entre dez pessoas que, como eu, amam livros e amam Paris e, aos 20 anos, não têm dinheiro nem para uma coisa nem para a outra.

* * *

Na semana passada, fui jantar com Thrity Umrigar, que veio ao Rio para a Bienal. É uma pessoa adorável. Inteligente, perspicaz, com um senso de humor maravilhoso e um olhar agudo para os pontos incongruentes da vida. Esqueçam as indianas de sári da novela; ela não usa jóias nem maquiagem, e veste-se como a jornalista que é. Thrity nasceu em Bombaim, onde viveu até os 21 anos. Depois, mudou-se de vez para os Estados Unidos. Mora em Cleveland, Ohio – e, embora eu nunca tenha estado em Bombaim, estive em Cleveland, e garanto que é difícil imaginar duas cidades mais diferentes. Considerando a presença constante da Índia nos seus livros e o seu olhar crítico em relação à sociedade americana, imaginei que sofreria do banzo mais incurável; pois errei.

-- Aqui no Rio, porém, está me acontecendo uma coisa estranha: tenho sentido uma saudade enorme de Bombaim! As duas cidades não são parecidas, mas têm alguma coisa misteriosa em comum, um jeito de ser, o mar, o gosto das frutas. Você vai ver. Quando estiver na Índia e for a Bombaim, vai morrer de saudade do Rio.

Apesar disso, distante do conceito bizarro dos BRIC que o noticiário nos martela sem parar, ficou perplexa quando leitores que lhe pediam autógrafos apontavam supostas semelhanças entre o Brasil e a Índia. Entendo bem. Eu teria caído das pernas se em Shanghai, por exemplo, alguém comentasse comigo como a China e o Brasil se parecem.

Seu novo livro, “O tamanho do céu” (Nova Fronteira, 380 páginas, tradução de Paulo Andrade Lemos), gira, justamente, em torno de diferenças, quase sempre insuperáveis – culturais, sociais, emocionais. De um lado a Índia, de outro um casal americano que quer curar, longe de casa, a dor da perda do filho; de um lado um vilarejo pobre parado no tempo, de outro a insensibilidade da globalização; de um lado empregados, de outro patrões. Acima de tudo, de um lado um homem, de outro uma mulher. Entre os dois, a impossibilidade da comunicação e um menino indiano.

“A distância entre nós” continua sendo, para mim, a obra-prima de Thrity Umrigar. “O tamanho do céu” é mais floreado e menos sutil. Mas não há como negar que a moça com quem passei umas horas tão divertidas sabe como contar uma história.


(O Globo, Segundo Caderno, 24.09.2009)

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