17.9.09

Canção do exílio








“Acabo de ler sua coluna de hoje, sobre Budapeste, e vupt, sento ao computador para me comunicar com esta autêntica alma gêmea de tribo, tão rara no meu universo. Também sou filha e neta e tudo o mais de húngaros. Sou a primeira criatura da família a nascer fora de lá, as far as I know.

Mas não foi só isso que me comoveu. Tenho vários amigos húngaros. O que me soou incrivelmente familiar foi a sua descrição da cidade. Cresci no mesmo caldo cultural em que se falava de Budapeste com esta aura magnífica que introjetei em cada célula minha.

A família do meu pai era proprietária de um dos 22 jornais que você menciona. Só os três filhos vieram para o Brasil em 38, 40 e 46 respectivamente. Meu avô materno era arquiteto bem sucedido. Veio com a mulher e as duas filhas três meses antes da guerra estourar, por precaução. Com o firme propósito de voltar. A casa que deixaram ainda está lá, em bairro elegante, subdividida em duas.

Eram pessoas que viveram esse período culturalmente rico da cidade, que tinham ótimo padrão de vida e viajavam com frequência. E chegaram num país ainda muito atrasado. Foram expulsos do Paraíso.

Uma amiga psicanalista, Ana Verônica Mautner, aliás, também húngara, me ensinou uma coisa que faz muito sentido. A classe social que mais sofre na imigração é justamente essa à qual pertenciam nossos familiares. Os mais ricos sempre tem ligações com o poder -- bancos, embaixadas, políticos de prestígio -- que lhes dão alguma acolhida. É uma rede internacional. Os mais pobres saem da penúria e sempre têm a esperança da melhora, o que de fato acaba acontecendo.

Mas o grande patrimônio da burguesia intelectualizada não é transportável. Conhecemos as pessoas certas, os lugares certos, colégios, livrarias, bairros, médicos, artistas. E somos conhecidos. Quando imigramos, perdemos nossa identidade de maneira dramática.

Fui a primeira vez para a Hungria em 1963. Tinha 18 anos. A "minha" Hungria de casa era essa Paris de que você fala. Frequentei o escotismo húngaro, desde os nove anos de idade, onde conheci a "outra" Hungria: alegre, musical, com um folclore rico e exuberante. Sabia cantar mais canções folclóricas do que provavelmente qualquer morador de lá, tinha até traje típico com o qual dançava nas apresentações do grupo. Eu era uma criatura bizarra, que lá se foi, toda pimpona, conhecer aquele país maravilhoso.

Amiga, foi um baque. Fiquei hospedada em casa de parentes e conheci de perto a dureza da realidade comunista. Não vi alegria nenhuma, vi uma cidade ainda destruída pela guerra, muito cinza e triste, e não conheci uma única pessoa que não fosse desconfiada, grosseira e infeliz. Entrei em depressão.

É claro que eu sabia o que estava acontecendo. Mandávamos sempre pacotes com roupas e dinheiro. Mas não dava para imaginar a diferença entre o país de sonhos e fantasias e o que eu visitava.

Alguns anos se passaram até que eu fosse capaz de compreender o sentimento de perda que envolvia meus avós. Meu avô era um homem muito habilidoso, enriqueceu de novo. Tinha um padrão razoável de vida e voltou a viajar bastante para o exterior. Mas havia uma tristeza por trás dos olhos de ambos que só passei a entender mais adulta quando, infelizmente, eles já haviam morrido. Morreram cedo, é claro.

Meu pai, que era uma espécie de dandy intelectual -- se formou em direito, trabalhava no jornal do pai, era bonito e namorador -- veio para cá com 26 anos de idade. Lá, suponho que era uma promessa. Aqui, foi um imigrante simpático, aprendeu a língua muito bem e tentou se virar profissionalmente como pode. Mas estava fora de seu script.

Sempre me senti estranha, nem isso nem aquilo. Quando comecei a ler seu texto ouvi um pouco dos ecos de mim mesma.

Já voltei a Budapeste depois da abertura e me reconciliei com a cidade. Ela é linda e encantadora. Minha comida de alma é a comida húngara, e gosto até hoje das músicas folclóricas, embora raramente as ouça. Quando cantava para meus filhos bebes, cantava em húngaro. Minha primeira neta sabe duas dessas canções infantis.

Mas, não é curioso?, a húngara que eu sou não tem território. A Hungria que continua viva foi muito alterada pelo domínio russo. A própria língua se vulgarizou. E jamais consegui ser brasileira de corpo e alma por causa das células ensandecidas que pensam que vivem no começo do século 20 far far away. Nem isso, nem aquilo.

Conheci seu pai rapidamente em 1964. Eu estudava no Rio, no Bennet, e um paquera que era poeta português me levou à sua casa. Só me lembro que era muito simpático. Quem sabe um dia nos conhecemos pessoalmente?

Um abraço enorme,

Edith Elek”

* * *


Eu tinha que mostrar essa carta para vocês. Quando a gente escreve em jornal, às vezes acontece isso: um leitor senta ao computador, como quem não quer nada, e vupt, prova por A + B que pode dominar o ofício tão bem, ou melhor, do que quem o exerce.

Foi muito emocionante para mim encontrar, no que a Edith escreveu, o reflexo de tantos sentimentos que conheço. O choque que ela viveu em 63, ao comparar realidade e fantasia, eu vivi em 77; como ela, eu também já voltei à Budapeste dos novos tempos, onde, apesar das paisagens afinal familiares, não encontrei a cidade que sabia.

Talvez a grande diferença entre nós seja que as minhas células européias se concentraram todas à flor da pele, essa casca branquela que não bronzeia nem por decreto. Quanto à parte de dentro, é cem por cento carioca -- ou quase isso. Às vezes, muito de vez em quando, bate uma coisa assim aqui do lado que dói vagamente; mas eu não lhe faço caso, e ela passa tão rápido quanto veio.


(O Globo, Segundo Caderno, 17.09.2009)

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