30.4.08


Mundo cão

Onde ficam os sentimentos
no vale-tudo da celebridade?



No ano passado, um psicopata que se diz artista amarrou um cão de rua a um arame, numa galeria de arte, e, supostamente, lá o deixou morrer de inanição, diante de uma mensagem idiota escrita na parede com pedaços de ração. Prometeu repetir a “instalação” este ano -– e, desde que ameaçou fazê-lo, a internet está em polvorosa. Não se passa um dia sem que eu receba dezenas de emails, a maioria com fotos do animalzinho, em estado deplorável, na tal galeria. Alguns pedem divulgação do caso, outros minha adesão a uma petição que, da última vez em que olhei, já tinha ultrapassado a casa dos dois milhões de assinaturas.

É uma reação mais do que compreensível. Afinal, o que pode fazer alguém com um mínimo de sensibilidade diante da indescritível impotência de saber que um bicho inocente será morto, com requintes de crueldade, num outro ponto do planeta?

Há controvérsias em relação ao caso. Investigações da WSPA e da Humane Society, duas respeitáveis sociedades protetoras de animais, foram inconclusivas. Não há provas de que o cão tenha efetivamente morrido, ainda que nada leve a crer que se tenha salvo. As duas sociedades -– tranqüilizem-se! -– já saíram a campo para evitar que a ação se repita; e membros da WSPA foram formalmente aceitos como observadores da bienal de araque para garantir que nenhum animal sofra maus-tratos.

Acontece que quem se propõe a deixar morrer um ser vivo em nome da “arte” conta, justamente, com o tipo de reação que está se vendo na internet. A essa altura, o torturador está famoso, e virou uma “celebridade” que, à sua maneira, garantiu repercussão gigantesca ao que quer que faça. Tivesse tido chance de levar adiante sua proposta “artística”, causaria protestos de arrasar quarteirão, e seria (será, de qualquer maneira) a figura mais comentada da bienal que o convidou -- e que, nem duvidem, o fez exatamente para isso.

A presença da WSPA é certeza de que nenhum bicho será perturbado, quem dirá imolado em nome do que quer que seja; mas esta própria presença renderá, por si só, muita notícia. Não faltará espaço na mídia para que os organizadores deitem falação e para que o “artista” possa discorrer sobre o sentido da arte, sobre a insuportável pressão que sofreu e sobre a incompreensão das gentes.

Durante uns tempos, podem anotar, ele ainda será convidado para uma quantidade de eventos, porque importante, hoje, não é mais o que se faz, e sim a repercussão que se alcança. Não faltarão teóricos para justificá-lo “artisticamente”, emprestando à sua “obra” os rótulos fajutos de “engajamento social” e “convite à reflexão”, posto que não há nada em artes plásticas que meia dúzia de lugares comuns não resolvam.

A verdade, porém, é outra. Num mundo em que o único valor de mercado é a celebridade, mais vale um criminoso que consegue mobilizar milhões do que um artista sensível que só fala a umas tantas almas. A Grande Arte do nosso tempo é o marketing, e a marca do gênio é a promoção. O resto deixou de ter qualquer relevância.

É por isso que peço a todos os amigos aflitos, que tanto têm se preocupado em divulgar o caso pela internet, que, por favor, não o façam mais. Graças à angústia de milhões de pessoas bem intencionadas, um crápula que deveria estar atrás das grades é, agora, um nome conhecido mundialmente. Não vamos aumentar ainda mais o seu cartaz.

* * *

Mudando de assunto e de certa forma ficando no mesmo, de todos os horrores do caso Isabella, um dos que mais me impressiona é o comportamento da mãe que, num primeiro momento, até me pareceu discreto. Depois foi o que se viu: aquele deslumbramento mal disfarçado e os telefonemas para estrelas de televisão, culminando na participação especial no megashow do Padre Marcelo Rossi, onde viveu seus 15 minutos de fama na área VIP com a Xuxa e com a Hebe. Visitou camarins, sorriu e posou para fotos -- ao lado de desconhecidos – vestindo camiseta com a foto da filha assassinada.

Sou da época em que a Morte (assim, com maiúscula) impunha certa gravitas mesmo às pessoas mais superficiais. Perda de filho, então, sobretudo assim trágica, era sinônimo de dor e de recolhimento, menos por imposição social do que por incapacidade de conciliar o sofrimento com a alegria do mundo.

Esta época é agora. Há sentimentos não mudam nunca, ainda que algumas palavras, como compostura, estejam fora de uso; da mesma forma, será sempre inaceitável que determinadas experiências, como a vivência do luto, tornem-se passaportes banais para a fama.


(O Globo, Segundo Caderno, 1.5.2008)

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