19.4.07


Maria Lenk,
a master mestra

Lembranças de um mundial na Itália

Em dezembro de 2003, Maria Lenk, então com 89 anos, quebrou o fêmur. A notícia causou grande consternação aqui em casa; ela e Mamãe eram não só amigas como colegas de natação, e preparavam-se para disputar o Mundial de Masters de 2004, que se realizaria em junho em Riccione, na Itália. Duas semanas depois, porém, quando Mamãe desceu de Friburgo e foi visitá-la, as notícias foram ótimas. Maria estava não só em franca recuperação, como tenazmente disposta a participar do campeonato.

Agora imaginem a cena: uma senhorinha de 79 anos, aliviada porque a amiga, de 89, que acabara de passar por uma delicada cirurgia para reparar uma fratura complicadíssima, garantia a participação num mundial de natação! Quem não as conhecesse, teria todo o direito de achar que estavam delirando. Mas as sereias vintage são, como todas as sereias, muito enganadoras. Por baixo da aparência frágil de velhinhas escondem uma determinação inabalável, uma fibra de ferro. São as verdadeiras Super Mulheres.

Tive a sorte de poder acompanhar Mamãe a Riccione e ver Maria Lenk cumprir a promessa. Ficamos na mesma pensão, junto com duas outras sereias maravilhosas, a Luzia e a Érika. Mamãe e dona Luzia ocupavam um quarto, Érika e a Maria Lenk outro. Eu, que passo a noite acordada no computador, tinha um quarto só para mim -- imagina se aquelas atletas exemplares tinham condições de conviver com criatura tão indisciplinada!

Não sei a que horas iam para o parque aquático, que ficava a uma boa distância da pensão. Só sei que, pelos meus padrões, eu acordava horrorosamente cedo e, ainda assim, quando chegava à piscina, todas já tinham faturado pelo menos uma medalha. Eu ainda estava semi-adormecida e pensando em café da manhã, e elas, animadíssimas, já discutiam o almoço. Muito humilhante!

* * *

A rotina de um campeonato é exaustiva. A cada prova correspondem horas e horas de espera. Em Riccione, esse tempo era passado no gramado ao lado da piscina, transformado pela chuva num gigantesco lamaçal. Equipes que já conheciam as instalações tinham se precavido e montado barracas, mas a maioria dos nadadores ficava mesmo solta por ali, tiritando de frio. Era um esquema meio selvagem, para dizer pouco.

O terreno era particularmente difícil para Maria Lenk, que não podia pôr o pé no chão e andava com auxílio de muletas. Era com visível sacrifício que ia até a piscina; uma vez na água, porém, estava em seu elemento. É claro que, por causa da cirurgia recente, não estava no auge da forma. Não bateu nenhum recorde, como de costume, e, ao contrário do que sempre acontecia, não chegou a vencer nenhuma prova, embora tenha conquistado várias medalhas de prata.

Qualquer mortal comum ficaria em estado de graça por se classificar em segundo lugar num mundial; Maria Lenk, no entanto, não me pareceu muito contente. Não cheguei a conversar sobre isso com ela, mas tive a nítida impressão de que, lá no fundo, estava convencida de que o Barão de Coubertin não sabia da missa a metade.

Tenho implicância com a expressão "lição de vida" -- mas não encontro outra forma para definir a sua atitude. Outra pessoa teria ficado em casa, teria evitado a longa viagem e os desconfortos do campeonato; acontece que Maria Lenk não era Maria Lenk por nada. Desde então, sempre que penso em desistir de alguma coisa por causa de uma contrariedade, me lembro dela.

Qualquer um que chegue aos 50 com a garra e a determinação com que ela chegou aos 92, pode dizer que venceu na vida.

* * *

Tentei enxotar todos os assuntos que me insultaram durante a semana, mas não consigo me livrar de uma frase do Iluminado, que explica, em boa parte, porque nunca antes, na história deste país, um presidente demonstrou tanta aversão pelo trabalho:

"Se um dia vocês chegarem à Presidência da República, vão perceber que esse é o ápice de um ser humano" -- proclamou. -- "Não tem nada além disso."

Ele já chegou lá; pronto!

E eu aqui, inocente, achando que o "ápice do ser humano" era a elevação espiritual conquistada através do bem e da sabedoria, ou a glória suprema de se viver uma vida longa, reta e vitoriosa como a da Maria Lenk...

Que falta de ambição estarrecedora essa de se contentar com as mordomias, com os puxa-sacos, com o aviãozinho! Como Collor antes dele, Lula está tão ofuscado pelo poder que não percebe a grandeza do que jogou fora —- a possibilidade de fazer História com H maiúsculo, em todos os sentidos.

* * *

Por falar nisso: "O Globo" fez História na primeira página de ontem, ao pôr tarja no rosto do morto velado no Cemitério do Catumbi. Está na hora de proteger a imagem das pessoas de bem.

(O Globo, Segundo Caderno, 19.4.2006)

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