26.4.07




As bolsas e a vida

E, finalmente, cronista vê "A alma imoral"

A Bia não mora mais comigo. Casou, mudou, adotou uma gatinha muito bonitinha chamada Chica, mas mantém direito de visitação aos gatos e os poderes quase plenipotenciários das filhas sobre os guarda-roupas das mães. No outro sábado, me ligou da praia:

-- Vou passar aí para ver os gatos. Ah, por acaso você tem uma bolsa grande sobrando?

Todas as minhas bolsas são grandes, sempre foram, mesmo antes desta moda abençoada que, de repente, me deu uma riqueza de escolha que, antigamente, eu só tinha em sonhos ou em lojas de departamentos americanas, o que dá mais ou menos na mesma. "Sobrar", porém, é um dos verbos mais relativos da língua portuguesa, parente próximo, metafisicamente falando, de "precisar".

Enquanto a Bia não chegava, dei uma olhada na situação do armário -- e, ato contínuo, fui tomada pela invariável crise de consciência que me ataca quando paro para refletir sobre as minhas posses. Tenho muitas sandálias, tenho cinco pares lindos e fúteis de All Stars e até alguns sapatos de verdade; tenho bem menos roupas do que a maioria das minhas amigas, mas muito mais do que de fato uso; e bolsas em profusão, todas bastante parecidas entre si, salvo as naturais e necessárias diferenças na cor e no formato.

Eu disse "necessárias"?! Mas que diferença faz se uma bolsa é mais ou menos arredonda na parte de baixo, desde que nela caiba o mundo de coisas que carrego comigo?! Para quê preciso de quatro bolsas pretas?! Enfim: pavorosamente culpada por embarcar no conto da sociedade de consumo, comecei, como de hábito, a desenvolver uma série de argumentos de auto-defesa.

Se ninguém comprasse nada, o que seria dos empregos gerados pela indústria e pelo comércio? Do que iriam viver essas pessoas? E o que é o meu modesto armário comparado ao inacreditável closet do Romário, exibido pelo Fantástico?! Por outro lado, quantos gols eu já marquei na vida?! E o que diria o Romário diante das minhas estantes, onde os livros estão estacionados em fila dupla?! E...

Nisso chegou a Bia, para alegria dos gatos e grande alívio da Pobre e Velha Mãe Doente. Brincou com os gatos, conversou comigo e, finalmente, fomos às bolsas.

-- Mãe! -- exclamou a Bia. -- Você está ficando maluca. Essas duas aqui são iguais!

-- Não são, não... Uma é mais arredondada na parte de baixo.

-- Oh, que diferença...! E, vem cá, quatro bolsas pretas?! Todas do mesmo tamanho?!

Minha desculpa, honesta e sincera, de que estou me precavendo para o dia em que a moda mudar e só se encontrarem bolsas ridiculamente pequenas nas lojas, não colou. Depois de fazer uma limpa geral, separando bolsas que já não seriam aceitas nem em brechós e capturando duas ou três muito úteis para uma jovem trabalhadora, ela foi embora, mais uma vez convencida da minha absoluta incompetência administrativa.

Num primeiro momento, fiquei encantada com o espaço conquistado no armário, subitamente amplo e fácil de arrumar. Prometi a mim mesma não comprar bolsas novas tão cedo e, até aqui, posso afirmar, cheia de orgulho, que estou cumprindo a promessa. O diabo são as provocações. Ali na loja da esquina tem uma bolsa preta linda, com a parte de baixo arredondada, que grita o meu nome cada vez que passo pela vitrine.

* * *

Fui assistir à "Alma Imoral", do rabino Nilton Bonder. A encenação é um ato de bravura de Clarice Niskier, até por se apresentar nua, eventualmente enrolando-se e desenrolandose, com muita habilidade, num pano preto.

Ainda assim, achei essa nudez desnecessária. O fato de "na natureza não haver nudez" não significa, necessariamente, que a atriz que pronuncia essas palavras tenha que estar nua. Considerando-se o fato de que a proposta da peça é discutir a alma e o pensamento, em tese as almas é que deveriam estar nuas -- mas, no caso dos espectadores, elas, ao contrário, vestem-se na nudez da atriz, ou seja, aquele passa a ser o ponto de (des)conforto da apresentação. Um amigo que estava a meu lado, por exemplo, fechou os olhos durante metade da peça, porque queria pensar sobre o que estava sendo dito. Mesmo que em nenhum momento a nudez de Clarice seja provocadora, ela distrai e rouba a atenção.

Concordo completamente com a maioria das idéias do rabino, expostas com inteligência e criatividade. Discordo apenas, e veementemente, quando ele afirma que um animal que se reconhecesse como tal deixaria de ser o animal que é. A idéia por trás dessa afirmação é, suponho, destacar a nossa capacidade de raciocínio -- mas acontece que todos os animais têm a exata noção do que são; apenas não enunciam isso.

Um gato não só sabe que é um gato, como sabe exatamente o tipo de gato que é, a tal ponto que gatos parecidos têm uma dinâmica peculiar de comportamento. Os elefantes sabem tanto quem são que, quando apresentados a ossadas dos seus antepassados, ficam profundamente perturbados. Eles são, possivelmente, a única espécie do planeta que sabe separar os ossos dos familiares de ossos de estranhos. Manda um humano fazer isso, sem teste de DNA!

De qualquer forma, em louvor da nossa espécie, deve-se reconhecer que é ótimo ver uma peça que discute ética e moral atrair tanta gente, por tanto tempo, com tanto sucesso.

(O Globo, Segundo Caderno, 26.4.2006)

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