18.5.06



Entregues aos ratos

Em São Paulo, a perfeita tradução do Brasil


Falo quase todos os dias com uma amiga em São Paulo. Os filhos não vão à escola desde o começo da semana, ela mesma só tem ido trabalhar porque não tem outro jeito, mas está completamente apavorada. A verdade é que estamos todos apavorados, dentro e fora de São Paulo -- menos, aparentemente, as autoridades paulistas e o presidente Lula, que, depois de explicar à nação que a explosão de violência foi "uma demonstração de força do crime organizado", mansamente esclareceu a quem ainda tivesse dúvidas que "combater o crime organizado é muito difícil". Pelo visto, a única coisa capaz de atingir o presidente e despertá-lo de sua imperial apatia são as reportagens da "Veja".

Diante da violência dos ataques, do número de mortos e do pânico causado pela ação dos criminosos, não falta quem fale em terrorismo; mas terrorismo é outra coisa. Terroristas, por definição, têm um objetivo a alcançar, ao passo que é difícil perceber qualquer objetivo na ação dos marginais de São Paulo, exceto tocar um terror geral -- mas, tirando o fato de que as palavras terrorismo e terror têm a mesma origem, as coisas são bastante diferentes. O que se vê em São Paulo e no resto do país é pior do que terrorismo. Quando há alguma reivindicação clara por trás de atos sinistros, há também um fio de esperança ao qual a sociedade pode se agarrar ? por esdrúxula que seja a reivindicação. Há uma lógica no terrorismo que, apesar de perversa, é lógica. Nada, porém, pode ser mais assustador do que este não sei quê, que vem não sei de onde e mata não sei por quê.

* * *

Como é que o governador Claudio Lembo pode recusar a ajuda da Polícia Federal?! Há quem argumente que a tal Força Nacional de Segurança não passa de uma ficção tecida pelo governo federal para ocultar a realidade de que pouco ou nada investiu em segurança. Acredito nisso. Mas também acredito que recusar qualquer tipo de ajuda num momento assim equivale a provar de vez para a população (como se ela já não estivesse farta de saber) que a política brasileira é mesmo podre. Os cidadãos que se danem, desde que as patranhas e interesses partidários não saiam prejudicados. Nojo.

* * *

A cobertura do "Fantástico", domingo, ainda no calor das chamas dos ônibus que ardiam, foi excelente ?- com uma grave exceção que, ao longo dos dias, se repetiu por toda a imprensa: o destaque dado à morte do bombeiro, muitíssimo maior do que o dado à morte de dezenas de policiais. A mensagem que este tipo de cobertura transmite é, mais ou menos, a de que matar um bombeiro é uma barbaridade, ao passo que matar um policial é algo corriqueiro, esperado.

Não está certo.

Sim, é verdade que os bombeiros em princípio não exercem a profissão para enfrentar bandidos, mas nem por isso o assassinato de um policial pode ser considerado "normal" ou a sua morte menos sentida do que a de um bombeiro (ou qualquer outra pessoa); também é verdade que a polícia brasileira tem problemas sérios e que a corrupção desmoraliza a instituição como um todo, mas os policiais que foram às ruas no auge da refrega para impor a ordem são verdadeiros heróis, e como heróis merecem ser tratados.

* * *

Aliás, a sociedade brasileira trata extremamente mal a sua polícia. Se ela não funciona, vamos trocar os maus policiais (a começar pelas chefias: quem deixou 12 mil presos saírem da cadeia no Dia das Mães, sabendo que a chapa estava quente?), vamos treiná-los melhor, dar-lhes condições decentes de trabalho e, especialmente, melhor remuneração. Mas não é justo exigir competência de Primeiro Mundo de quem se arrisca diariamente nessa guerra civil com equipamentos materiais e psicológicos tão precários.

* * *

Por incrível que pareça, é possível ver um lado positivo -- ou, vá lá, menos negativo -- na violência que varreu São Paulo. Como sabe qualquer pessoa que mora no Rio, há tempos as autoridades perderam qualquer controle da situação; e há tempos o problema não é apenas carioca, muito embora a incompetência das nossas autoridades muito contribua para esta percepção. Acontece que o Governo Federal é, desde os tempos de FhC, uma questiúncula paulista. Nada do que acontece fora de São Paulo repercute em Brasília -- imagino que nem mesmo o que acontece em Brasília, posto que a politicalha passa mais tempo voando do que trabalhando no Congresso ou no Executivo. Quem sabe agora alguém não acorda e começa a tratar a questão da violência como algo de fato sério, como o problema de dimensões nacionais que é, e não apenas como uma bizarra peculiaridade carioca?

* * *

Deu no "Rio Show" de sexta-feira:
"Enquanto estava no restaurante Mondego, um gato cruzou o salão e foi parar no colo de um garçon. Em seguida, uma cliente levou o bicho para a cozinha. Nem consegui comer depois disso. Luiz Catugy". Gerente do Mondego, Francisco Rodrigues, responde: "O gato chama-se Austin, é castrado, vacinado, limpo e nunca vai para a cozinha, somente para (....) a despensa. Além disso, só come ração".
Amigos de gatos, todos ao Mondego! Vamos fazer um jantar de desagravo ao Austin!

(O Globo, Segundo Caderno, 18.5.2006)

Nenhum comentário: