Notícias de uma guerra particular
É nas crises que as voadoras se revelam:nota zero para a Air France
A passagem, comprada em julho, garantia que eu iria daqui para a Europa no upper deck do 747, aquele cocuruto simpático que, em algumas companhias, abriga a executiva, e que, na Air France, é o cantinho menos doloroso da econômica. A antecedência também me garantia o assento na fila 26, em frente à porta de emergência. Não sou nenhum ministro Nelson Jobim, mas em tempos de apagão aéreo e de dólar barato, só masoquista viaja sem um mínimo de precauções. Em geral, tomo a mais simples de todas: não viajo em classe econômica. Mas meu anfitrião foi insistente:
— Você vai ver. A econômica da Air France é confortável. Esse lugar é ótimo. Acredite.
Num impulsivo triunfo da esperança sobre a experiência, acreditei; e a ida até foi, supreendentemente, bastante razoável. Fui muito bem atendida pelo rapaz que fez o check-in, no upper deck havia lanchinho à noite, e o espaço da emergência em frente à poltrona quase compensava a sua ridícula falta de largura e de inclinação.
Saí de Berlim sexta à tarde, e passei o sábado em Paris. Pelo sim pelo não, liguei para a Air France, para garantir aquele ótimo assento que, me tranqüilizaram do outro lado, era "reserva confirmada". Fui dormir sossegada e, no domingo, com a devida antecedência, apresentei-me no aeroporto, onde, depois da quilométrica fila do check-in, me receberam com uma indagação bizarra. Será que eu aceitaria viajar no dia seguinte em troca de 150 euros? A pergunta não tinha graça nem como piada. Expliquei que tinha uma reserva confirmada no assento 26C.
— Não é nada que a senhora tenha feito de errado, — esclareceu a atendente. — É que a companhia vendeu mais passsagens do que lugares disponíveis na aeronave.
— Overbooking? Desolée, mas eu confirmei a reserva pelo telefone ontem mesmo.
— Sim, a senhora fez tudo certo, mas a companhia vendeu mais passagens do que lugares disponíveis na aeronave.
Para meu horror, descobri que estava diante de um call-center ao vivo. Não havia vida inteligente atrás do balcão, só um script a ser repetido até a vítima desistir de qualquer reação.
As malas foram embarcadas para lugar nenhum e recebi um cartão de embarque sem marcação de assento. O caso só seria decidido no portão de embarque, o que significava que eu só descobriria o que me reservava o destino depois de passar pela fila da imigração e pela segurança. A cena que me esperava depois de tirar e botar o casaco, depois de tirar e guardar o notebook na mala e até de ser revistada pela polícia ("É uma escolha aleatória, madame") não era bonita de ver: dezenas de passageiros amontoados em volta de um balcão onde um rapaz tinha a ingrata missão de informá-los de que eles não haviam feito nada de errado, mas que a companhia vendera mais passagens do que lugares disponíveis na aeronave. Um senhor que vinha de Bangkok teve um ataque, uma senhora começou a gritar.
— Vocês querem se controlar? — disse, em francês, o funcionário covardemente atirado pela Air France aos leões. — Não sou obrigado a ouvir desaforo, estou sozinho e quero ver o que vocês vão fazer se eu for embora.
Até então ele contava com toda a minha simpatia; mas quem overbooka passageiro não pode falar grosso.
— Alto lá! — exclamei. — Não venha de ameaças. Essas pessoas têm todo o direito de ter um ataque de nervos. Você devia se dar por satisfeito pelo fato de que algumas ainda conseguem manter o sangue-frio!
Essa observação talvez tenha me custado a volta ao Rio. Ele passou vários suiços na minha frente e até embarcou duas pessoas que estavam lá atrás, mas deram carteiradas com passaportes de serviço. Na minha vez, já havia outros funcionários administrando o caos. Fui informada de que não havia feito nada errado, que a companhia vendera mais passagens do que lugares disponíveis na aeronave e que, àquela altura, tudo o que podiam fazer era me conseguir um lugar na TAM no dia seguinte.
Com a notória magnanimidade francesa, a Air France ofereceu aos overbookados hospedagem no Ibis (!) do aeroporto (!!) e refeições no hotel (!!!). Masoquismo tem limite. Pedi taxi de volta para a cidade. Ganhei um mísero cartão telefônico de dez minutos para 1) chamar o táxi; 2) avisar minha família e os meus colegas do atraso; e 3) chamar o taxi de novo no dia seguinte; um kit de toilette de última que não tinha sequer sabonete; um voucher para vôo futuro (ha ha ha); e o mais absoluto descaso de uma companhia que trata seus passageiros sem qualquer carinho ou cortesia, exatamente quando eles mais precisam de conforto. Os coitados que aceitaram o hotel, vim a saber, foram chutados de lá ao meio-dia, e as "refeições" eram pacotes de congelados que tiveram de aquecer no microondas.
Moral da história: quando vocês estiverem vendo televisão, e ficarem com uma incontrolável vontade de ir para Paris depois de assistir às lindas propagandas da Air France, apertem os cintos e amarrem-se correndo à primeira poltrona.
De casa.
(O Globo, Segundo Caderno, 18.10.2007)
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