5.4.07

A violência dos nobres

Não foi só o tráfico de drogas que chegou à Fonte da Saudade

Há um serial killer à solta na Lagoa. Já fez um número considerável de vítimas, mas quase ninguém se importa. Quantos animais precisarão morrer para que o assassino seja, enfim, descoberto e punido?! Beijo, o amável cachorro da roteirista Maria Camargo, foi um dos inocentes mortos por esse, ou essa, psicopata. Deixo a palavra com a Maria:
"Notícias assustadoras nos mostram que o tráfico de drogas chegou a uma das regiões mais nobres do Rio, a Fonte da Saudade, na Lagoa. Como moradora da área, fiquei assustada, mas a violência aqui não é novidade nem privilégio dos traficantes, muito menos dos "favelados" que se aproximam a cada dia. Entre os moradores abastados, gente com posses e ótimas condições de vida, também há violência e maldade.

Estou falando de crimes contra animais -- e certamente muitos vão dizer que isso os torna menos graves. Não concordo. Violência é violência e o desrespeito à vida é sempre assustador, seja ela vida de gente ou de bicho. Além do mais, no caso da matança de animais que vem ocorrendo na Rua Carvalho Azevedo, crianças também correm risco, pois o veneno utilizado para exterminar os bichos está ao alcance delas e mata em cinco minutos. Semana passada, meu cachorro foi mais uma vítima. Meus filhos tiveram veneno de rato ao alcance das mãos.

Moro numa casa que dá fundos para a Rua Baronesa de Poconé. No final da tarde de segunda-feira, meu cachorro, um pastor branco, silencioso e tão manso que se chamava Beijo, foi envenenado. Soube depois que um vizinho, Dinoel Sant’Anna, teve seus 13 gatos envenenados da mesma forma, em 20 dezembro de 2006. Os bichinhos estavam nos fundos da casa, assim como o Beijo, fora do alcance de quem passa pela rua. O caso foi registrado na 15ª DP, sob o número 015-03526.

No ano passado houve ainda outro caso de envenenamento: o belo husky siberiano de Alfredo Dias Gomes, que vivia na casa ao lado da minha até que alguém acabou com ele.

As três casas têm em comum, além da tristeza de ver seus animais assassinados: os fundos para o Condomínio Garça Azul, na Rua Baronesa de Poconé. Seria de se supor que pessoas que vivem em tão boas condições tivessem um mínimo de educação, mas infelizmente problemas com esse condomínio não são novidade. Nossas casas, e as outras, que não têm animais, são constantemente alvejadas por sacos de urina, ovos e toda sorte de objetos. Carne envenenada com "chumbinho" agora também se tornou parte do cardápio.

Meu caso foi registrado na mesma delegacia, sob o número 015-00918, mas os precedentes não são muito bons. No caso do meu vizinho, o síndico do condomínio foi intimado, mas sequer compareceu à audiência.

Há ainda outras dificuldades, essas comuns a todos os cariocas que têm bichos covardemente assassinados. Para provar o envenenamento, é preciso a autópsia do animal. No Rio de Janeiro, o Instituto de Veterinária Jorge Vaitsman, que pertence ao município, está com os serviços de necropsia suspensos. Com a ajuda do vereador Cláudio Cavalcanti, consegui que fizessem a autópsia no meu cão e constatassem a presença do veneno, mas para minha surpresa a coisa ainda não estava resolvida. Longe disso.

A burocracia impede que o Instituto forneça laudo toxicológico, com valor pericial. Ele pode, portanto, ser questionado legalmente. Para ter o documento certo, é preciso enviar as vísceras do animal para Botucatu, no interior de São Paulo. Somente lá, nos laboratórios da Unesp, existem os equipamentos necessários para esse fim.

A coisa se torna ainda mais complicada porque o dono do animal tem que enviar as vísceras por sua conta, dentro de um isopor, via correio. O gelo recomendado para armazenar o material é quase impossível de se encontrar: no meu caso, consegui que uma fornecedora para grandes empresas, com pena, me desse de presente duas unidades.

No correio, mais problemas: não existe Sedex 10 para Botucatu, o que faz com que o material demore três dias para chegar ao seu destino. Ninguém garante, é claro, que as vísceras não vão se deteriorar até chegar lá.

Enfim: tudo leva o dono de um animal envenenado a desistir. Deixar quieto. Deixar o assassino tranqüilo, favorecido pela burocracia e pelo descaso.

Mas, assim como no caso do avanço do tráfico na Lagoa, algo tem que ser feito. Contra a fabricação e venda indiscriminada de chumbinho, contra a falta de educação e de respeito ao próximo, contra a crueldade, contra o descaso pela vida, contra a burocracia que facilita a vida de um assassino e presenteia-o com o anonimato e com as oportunidades para continuar agindo.

Nossos animais correm riscos. Nossos filhos correm riscos. Todos nós corremos riscos por viver em tal sociedade."


(O Globo, Segundo Caderno, 5.4.2007)

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