12.4.07


A desconstrução do Rio: mais um exemplo

E, numa livraria perto de você, uma biografia extraordinária e altamente legível de Hannah Arendt

Há algo profundamente errado com uma cidade que incorporou ao vocabulário não-especializado a expressão "mobiliário urbano". Numa cidade normal, que funciona e que pode ser usada sem susto pela população, as pessoas referem-se a bancos, postes e pontos de ônibus isoladamente, como referências geográficas, pontos de encontro ou, mesmo, detalhes da paisagem eventualmente necessitados de reparos.

Quando a imprensa passa a escrever "mobiliário urbano" sem precisar abrir parênteses para explicar do que se trata, é sinal de que o dito mobiliário está em crise de manutenção geral e prolongada. Em circunstâncias normais, em cidades normais, apenas arquitetos e urbanistas têm intimidade com essa expressão; assim como, em circunstâncias normais, em cidades normais, a maioria das pessoas nem desconfia do que significam palavras como AR-15, AK-47 ou 9mm.

Mas o descaso geral com a cidade e o nosso convívio diário com a violência são apenas as pontas mais visíveis do iceberg de incompetência em que afunda o Rio. Basta conversar com profissionais de qualquer área para descobrir as verdadeiras dimensões da catástrofe. Nada funciona, e mesmo o que um dia já funcionou, hoje se desmancha a uma velocidade digna do Pan.

Na semana passada, a Maria Camargo fez, aqui, uma grave denúncia: não há, no Rio de Janeiro, um único orgão capaz de fazer o laudo toxicológico de um animal -- necessário, entre outras coisas, se o dono de um bicho assassinado quiser processar o criminoso. A saída, como sempre, é o aeroporto: o laudo pode ser feito em Botucatu (!). Logo em seguida, recebi o email de uma veterinária do Instituto Municipal Jorge Vaitsman, onde funciona uma espécie de IML animal. Diz ela:

"O Instituto não possui aparelhagem para tal. Concordo que enviar o material para Botucatu não é uma solução satisfatória, mas antes, mesmo encontrando veneno, não tínhamos para onde encaminhar amostras para comprovação laboratorial, e ficávamos tão frustados e revoltados como os donos. Na realidade, o orgão respaldado juridica e técnicamente para realizar exames toxicológicos no estado do Rio é o Instituto de Crimilalística, que possui aparelhos e pessoal gabaritado, incluive tem veterinários no quadro de funcionários. Em outros estados é assim que funciona, mas aqui no Rio o Carlos Eboli diz que não faz exame de animais. Mas por que eles não poderiam realizar o exame , se as delegacias aceitam abrir BOs?!"

Para quem não se importa com animais, esse pode parecer um problema menor; mas a violência contra animais não está dissociada da violência contra humanos. Numa cidade onde se vende veneno na esquina, impunemente, como se fosse picolé, todos correm perigo igual -- bichos e gente.

"Há cerca de quatro anos o Instituto Jorge Vaitsman vem enfrentando deterioração rápida e progressiva dos serviços prestados, por falta de interesse político, falta de verbas, equipamentos e manutenção," -- continua a minha correspondente. "Éramos referência em Medicina Veterinária, tinhamos orgulho de trabalhar no Instituto. Agora andamos desmotivados e sem esperanças."

Assim se desfaz uma cidade.

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"Meu Deus", pensei com minhas estantes, "o povo vai me trucidar por recomendar esse livro...!" Uma biografia com 644 páginas, a R$ 75, não é exatamente a dica que se espera nos nossos tempos bicudos, mais propícios a policiais levinhos. Acontece que comecei a ler “Nos passos de Hannah Arendt” depois do jantar e fui dormir às seis, muito contrafeita por não ter conseguido terminar a leitura; liguei o despertador do celular e acordei mais cedo do que de hábito para mergulhar novamente na obra extraordinária de Laure Adler, publicada pela Record em ótima tradução de Tatiana Salem Levy e Marcelo Jacques.

Sou leitora compulsiva e este comportamento não chega a ser propriamente excepcional em mim. O que é notável é que nunca tive nenhum interesse particular por Hannah Arendt. Numa livraria, com certeza teria passado batida por este livro tão circunspecto. Peguei-o, quase por vício, na redação, onde,imagino, esperava uma alma indômita disposta a desbravá-lo.

Mas aparências e rótulos enganam. Ninguém precisa gostar de filosofia, política ou história para apreciar Hannah Arendt como personagem. Judia na Alemanha dos anos 30, liberal num tempo de mulheres reprimidas, amante de Heidegger (simpatizante do nazismo), dona de uma coragem intelectual assombrosa, polêmica até o fim: sua vida daria um romance e tanto, supondo-se, claro, que alguém tivesse imaginação suficiente para inventar uma existência com tanto enredo. Deu, para sorte dos leitores, essa biografia tão legível quanto minuciosa, que traça o retrato de toda uma época ao falar de uma das pessoas que mais lutou para entendê-la.


(O Globo, Segundo Caderno, 12.4.007)

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