23.9.04





A vida secreta do Bonequinho


Há mais coisas na vida do Bonequinho do GLOBO do que aplaudir de pé, aplaudir sentado, olhar, dormir ou sair do cinema. O Bonequinho se emociona, o Bonequinho torce, o Bonequinho passa por dúvidas torturantes, o Bonequinho fica indignado, o Bonequinho dá pulos de contentamento na poltrona, o Bonequinho sai da sala -- no fim do filme! -- andando nas nuvens, o Bonequinho arranca os cabelos de nervoso, o Bonequinho tem engulhos e, às vezes, sincera vontade de se atirar pela janela. Sobretudo, o Bonequinho rala muito, ainda que, para a maioria dos mortais, ir ao cinema e dar palpite sobre o filme dificilmente se enquadre na categoria de ralação.

No último fim de semana, por exemplo, enquanto seus amigos aproveitavam as tardes lindas da primavera carioca e depois iam jantar feito gente civilizada, o Bonequinho estava trancado no escurinho do Odeon, junto com um monte de tipos estranhos, assistindo a meia dúzia de filmes diferentes, de um bom documentário sobre a al Jazeera a um pornô que se acha filme-cabeça. Na segunda, coitado, em vez de aproveitar o conforto da cama e dormir até mais tarde, teve que acordar cedinho para estar lá novamente, às dez em ponto, para assistir a "Santa menina". É mole?!

A sorte do Bonequinho é que ele não só consegue estar em vários lugares ao mesmo tempo como, ainda por cima, consegue permanecer num mesmo lugar tendo várias opiniões simultâneas. É por isso que as suas críticas saem assinadas por tantos pseudônimos. Às vezes, ele até assina Cora Rónai, mas como este é um nome geralmente indisponível antes das 14h, a participação desta cronista como alter ego do personagem mais simpático do jornal tem sido muito esporádica. Fico triste e vivo tentando (em vão) mudar de vida, porque adoro ser Bonequinho.

Acontece que ser Bonequinho é escrever sobre cinema de uma perspectiva única, totalmente carioca. Enquanto os demais jornais do mundo têm que se virar com cotações em estrelas, bolas e asteriscos, todos igualmente impessoais, o Bonequinho não só resume a nossa opinião como acaba se tornando personagem da crítica. Não raro nos sentimos obrigados a explicar suas atitudes para os leitores, como aconteceu com o Eros Ramos de Almeida ainda semana passada: "O Bonequinho está saindo do cinema só porque foi obrigado a entrar", esclareceu. Pudera: o filme era "Anaconda 2, a caçada pela orquídea sangrenta" (!).

Ser Bonequinho é ver metade dos filmes antes de todo mundo e metade quando sai em DVD; é passar meses sem ir a um cinema de verdade; e é, volta e meia, viver situações bizarras como, digamos, encontrar o padre Marcelo Rossi cercado por suas ovelhas, em plena manhã de sábado, entoando hinos antes da exibição especial de "Maria, mãe do filho de Deus". Ser Bonequinho é, também, zoar muito o infortunado colega que cai numa dessas.

Ao contrário do que é permitido ao público (e do que mostra a sua imagem), o Bonequinho jamais sai da sala antes que o filme acabe. Por pior que seja o que está na tela, lá fica o pobre coitado, pacientemente esperando os créditos finais. No domingo mesmo, enfurnada no Odeon como seu alter ego , assisti, do começo ao fim, a um dos piores filmes dos últimos tempos, "Um vazio no meu coração" ? o tal pornô metido a filme-cabeça. Lá se foram 98 preciosos minutos da minha vida, imolados em nome do cinema.

Assistir a essas multissessões no Odeon, porém, que já se transformaram em festas para iniciados, só acontece em festival. Normalmente, o Bonequinho vê um filme por vez, nas cabines das distribuidoras -- salinhas confortáveis mas sem luxos, com uns 20 lugares, tipicamente escondidas em edifícios do Centro. Houve tempo em que apenas os jornais eram levados a sério, e o Bonequinho podia se dar ao luxo de marcar dia e hora da sessão; era chique demais mas era, também, uma experiência muito solitária. Hoje o Bonequinho divide sessões previamente marcadas com pelo menos uma dúzia de colegas, e curte mimos das distribuidoras, que põem refrigerantes e salgadinhos à sua disposição. Na sessão especial do ?Náufrago?, por exemplo, houve farta distribuição de água-de-coco com coco e tudo: achei tão simpático e engraçado que nunca me esqueci disso. Já do filme...

Muitas vezes, sobretudo no circuito Estação, as cabines (como, por tabela, são chamadas as sessões prévias para a imprensa) são realizadas nas próprias salas de exibição. Mas como elas têm que estar disponíveis para o público na parte da tarde, o Bonequinho é obrigado a acordar cedo e ir para o cinema às dez da manhã. Todo mundo tem sua cruz para carregar, e esta é a do Bonequinho. Nem todos os seus dez alter egos são tão radicalmente noturnos quanto eu, porém todos concordam neste ponto: ir ao cinema antes do almoço é prejudicial à saúde. O Bonequinho está careca de saber disso mas, resignado, acerta o despertador e prepara-se para uma nova missão. Ah, o que ele não faz pela arte!


(O Globo, Segundo Caderno, 23.9.04)

Nenhum comentário: