A Mater Dolorosa de Beslan
Considerações sobre a dor, a beleza euma fotografia que personificou a tragédia
A mulher é jovem e bonita, muito bonita. Vestida com apuro, sobrancelhas feitas, cabelos presos num rabo-de-cavalo do qual poucos fios se soltaram, está sentada no chão, de joelhos dobrados, braço esquerdo dobrado também, entre o tronco e a perna que a longa saia preta encobre. A mão, enfeitada com dois anéis de prata, singelos como alianças, toca o próprio pescoço; o braço direito estende-se na direção do olhar. Há tal beleza e elegância na postura que a gente poderia até pensar numa pose estudada -- não fosse pela mão direita, que acaricia a cabeça de uma criança morta.
De todas as terríveis imagens de Beslan, nenhuma me tocou mais do que esta mãe quase serena, mergulhada na intimidade da sua dor, sem uma lágrima sulcando o rosto ou um traço da sujeira e do caos à sua volta refletindo-se na roupa ou na compostura. Passei dias assombrada com a foto de Sergei Karpukhin, da Reuters, que foi publicada em jornais e revistas do mundo inteiro e que, obviamente, fisgou um nervo exposto do nosso inconsciente coletivo.
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Num planeta ao qual não faltam desgraças, a repetição torna tudo mais ou menos banal, da tragédia infindável da África às cenas de horror no Oriente Médio, da devastação das guerras longínquas à nossa própria violência doméstica, que vai da pobreza indescritível da periferia aos assassinatos gratuitos da esquina.De certa forma, já nos acostumamos com as fotos de legiões de famintos, com as procissões de desassistidos que deixam suas terras com os poucos haveres, com as eternas velhinhas de lenço na cabeça erguendo as mãos para os céus diante de casas demolidas ou filhos mortos, com homens carregando crianças feridas, com meninos armados até os dentes; já conseguimos ver fotos de mulheres e crianças com pernas arrancadas por minas terrestres sem ter pesadelos durante semanas, já até tomamos café da manhã depois de conferir as últimas baixas dos tiroteios no Rio de Janeiro. Somos, felizmente, animais altamente adaptáveis, ou tanto e tamanho horror simplesmente nos paralisaria.
Ainda assim, a associação da beleza com a tragédia é sempre desconcertante. A segunda fatalmente deveria excluir a primeira, pelo menos no imaginário de uma sociedade em que o belo é um valor em si mesmo, acima de qualquer outro mérito ou juízo.
Afinal aí está, no cinema, na televisão, na propaganda: todo mundo sabe que ser bonito é ser feliz, e vice-versa. Às vezes nos lembramos de Marilyn Monroe, mas apenas como um conto moral, uma espécie de consolo por nossas eventuais imperfeições; e mudamos logo de assunto, antes de precisar pensar.
A pungência da imagem da mãe de Beslan, porém, em que a beleza se traduz em dor, dá um curto-circuito no nosso conformismo visual. Ela nos lembra algo que nunca esquecemos, mas que preferimos não recordar: a miséria não é nem feia nem bonita, apenas humana. E não há nada -- situação geográfica, dinheiro ou mesmo beleza, este atributo dos deuses -- que possa nos livrar dela.
Acontece que, quando uma imagem de fato vale por mil palavras, é muito difícil -- quando não impossível -- tentar explicar seu valor.
Olho para a foto extraordinária e o mistério é maior do que qualquer racionalização que eu possa fazer. Através da dor muda, do gesto contido e da infinita delicadeza da jovem mãe russa, falam ao meu coração vários séculos de arte ocidental, representados nos grandes quadros que, mesmo sem saber, registrei na memória: aqueles em que a Virgem, linda, introspectiva e elegante como a Pietá de Beslan, tem no colo o filho morto. Em suma, a expressão máxima da dor em todo o esplendor da beleza.
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Pensar sobre esta fotografia emblemática foi a forma que encontrei de pensar e não pensar sobre o que aconteceu na Rússia. Para mim, nada justifica semelhante grau de violência, nem o desejo de independência dos chechenos, nem a intransigência com os seqüestradores por parte do governo russo. Há um ponto além do qual não há explicação possível, um ponto além do qual não há mais qualquer humanidade.Ao mesmo tempo, não consigo acreditar numa única palavra do que diz o Kremlin. Vladimir Putin é a perfeita encarnação de um sistema paranóico e patologicamente mentiroso, incapaz de dizer a verdade ainda que ela lhe seja favorável. Como no caso do escorpião da anedota, é uma questão de caráter.
Não acredito que os seqüestradores da escola fossem separatistas chechenos, não acredito que fossem da al Qaeda, não acredito que o prisioneiro que vem sendo exibido na televisão seja quem dizem que é, nem que os fatos aconteceram como se diz.
Não acredito em nada, rigorosamente nada. E nem no seu avesso.
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Enquanto isso, no nosso amável paraíso tropical, onde tudo vai bem e a classe política está, como sabemos, num patamar de elevada civilização e inquestionável civismo, o presidente do TSE apóia a lei que garante a acusados de crimes o direito de se candidatar. Ele está, em tese, defendendo a Constituição. É um belo gesto, mas só queria saber quem vai defender, depois, os cidadãos.(O Globo, Segundo caderno, 9.9.04)
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