19.9.04



Relendo Jorge de Sena

Cada vez que leio Jorge de Sena descubro uma coisa nova, ou uma coisa antiga que me impressiona de maneira nova.


Genesis

De mim não falo mais: não quero nada.
De Deus não falo: não tem outro abrigo.
Não falarei também do mundo antigo,
pois nasce e morre em cada madrugada.

Nem de existir, que é a vida atraiçoada,
para sentir o tempo andar comigo;
nem de viver, que é liberdade errada,
e foge todo o Amor quando o persigo.

Por mais justiça... -- Ai quantos que eram novos
em vâo a esperaram porque nunca a viram!
E a eternidade... Ó transfusâo dos povos!

Não há verdade: o mundo não a esconde.
Tudo se vê: só se não sabe aonde.
Mortais ou imortais, todos mentiram.

(1946)



Fidelidade

Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como outra solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?

Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.

(1958)

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