27.9.04



Festival do Rio 2004
Olhos que não vêem

Tudo o que é sólido desmancha no ar


Anos 90: o Peru, depois do governo desastroso de Alan Garcia, cai nas mãos de Alberto Fujimori, visto como o salvador de uma pátria corroída pela hiperinflação, pela guerrilha, pela corrupção. Dez anos depois, é o próprio Fujimori quem sai pela porta dos fundos, envolvido, através de Vladimiro Montesinos, o poderoso chefe do serviço nacional de informações, num dos maiores escândalos políticos da América Latina.

A turbulência é geral. Quem estava por cima afunda, quem estava por baixo reaparece; as raposas felpudas bóiam ao sabor dos ventos, como sempre, enquanto o povo vai tocando sua vidinha, mais ou menos resignado com o fato de que todos os políticos são farinha do mesmo saco.

Este é o background para as várias histórias entrelaçadas de Olhos que não vêem, do peruano Francisco Lombardi (o diretor de "Pantaleão e as visitadoras": um filme sensível e interessante que, apesar de alguns chavões -- ou talvez até por causa deles -- funciona curiosamente como instantâneo não só do seu país, mas de toda a região. Nós já vimos este filme, metaforicamente falando, no Brasil, na Argentina, no Chile, no Uruguai; apesar da língua e da paisagem, estamos em casa com os militares, os corruptos, a violência e a pobreza. Somos todos íntimos do caos.

Durante a reviravolta da trama, um general perde o poder, um advogado corrupto perde a amizade dos juízes a quem subornava, dois velhos, vizinhos de leitos numa enfermaria, perdem e ganham discussões sobre a situação política, um apresentador de telejornal perde a cara imaculada e a alegria de viver, uma jovem perde a inocência, um casal de militantes perde, para começar, a estabilidade conjugal, e os para-militares que os atormentam perdem a pose e a liberdade.

A trajetória de todas essas personagens se cruza em algum momento, em diferentes graus de densidade dramática, tendo o hospital como centro nervoso. O roteiro é engenhoso e funciona muito bem; sua maior virtude é evitar maniqueísmos fáceis e dar dimensão humana mesmo aos vilões da história. Como todos os demais, eles também têm suas angústias, seus medos, suas fraquezas. Às vezes, quase simpatizamos com eles.

À margem do drama, mas por acaso do destino em pleno olho do furacão político, está o contínuo Gonzalo (Paul Vega), apaixonado por cinema e pela filha da dona da pensão -- que, naturalmente, o despreza por completo. Quando se concentra na história deste implausível e caricato personagem, o filme esbarra num acorde dissonante, que surpreende no primeiro momento mas depois não causa nada além do vago constrangimento que sentimos quando alguém repete uma piada sem graça.

Isso, porém, não chega a comprometer este ótimo filme. Afinal, a gente sabe: a essência da alma latina é assim mesmo, um torvelinho de paradoxos, depurada em doses igualmente exageradas de Gardel e Cantinflas.


(O Globo, Segundo Caderno, 28.9.04)

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