Eleições:
o povo, unido, não tá nem aí
Um conhecido que está se candidatando à assembléia me telefonou, desconsolado. Não tem dinheiro, está amargurado com as campanhas milionárias que lhe sorriem em cada esquina e não se conforma com a proibição de espalhar cartazes, faixas e galhardetes pelas ruas. Foi, aliás, a única voz dissonante que ouvi no coro geral de louvor ao TRE pela preservação da limpeza física da cidade -- pelo menos isso, já que na limpeza moral não há quem dê jeito.
O moço é educado e civilizado e, até onde posso julgar, candidata-se por genuíno espírito público. Acha que a papelada que nos parece tão desnecessária e poluente ainda é a forma mais barata de publicidade, e que uma campanha clean como a que tivemos favorece os candidatos que têm mais recursos. Além do quê, diz ele, a cidade toda empapelada ganha um ar de festa. Observo que festa não precisa necessariamente ser sinônimo de sujeira, mas ele insiste:
-- Então você não está vendo? Essas são as eleições mais frias que já tivemos!
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Na livraria me encontro, por acaso, com outra conhecida que também se candidata. É uma pessoa gentil e educada, e está apavorada com o que a espera, caso consiga vaga na gaiola de ouro. Tem ouvido coisas de arrepiar a respeito de uns inquilinos já instalados que, para o bem de todos e felicidade geral da cidade, deviam estar trancados numa boa gaiola não metafórica. A duas semanas das eleições, ela não consegue disfarçar o cansaço e mal esconde o desânimo. Apesar de valente e lutadora, acha que vai ser difícil realizar qualquer coisa com a meia dúzia de gatos pingados que chegarão à assembléia sem segundas intenções -- e, sobretudo, sem o apoio da população, que está, a seu ver, absolutamente apática:-- Um vereador precisa do apoio do povo, mas a verdade é que ninguém quer saber de política, ninguém...
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Já uma terceira amiga candidata, que provavelmente foi tigre na outra encarnação, está disposta a mudar o mundo a partir da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Percorreu a cidade de alto a baixo, chamou outros candidatos às falas, fez e aconteceu. Mas mesmo ela está impressionada com uma coisa: o horror do povo aos políticos. As pessoas não querem dar nem bom-dia aos candidatos, que dirá ouvir o que têm a dizer.-- Todo mundo reclama do estado de coisas, mas quando alguém decide deixar a falação de lado e pôr mãos à obra, todo mundo some. Ninguém quer falar com político! O pessoal vê candidato se aproximando e foge correndo.
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Meus amigos candidatos que me perdoem, mas a reação do povo é perfeitamente compreensível. Não estamos tendo as eleições mais frias de todos os tempos por falta de galhardetes ou de cartazes empastelando a cidade, mas sim por falta de vergonha na cara dos políticos que elegemos no passado. O povo não tem o menor interesse em ajudar os vereadores, porque os vereadores, salvo raríssimas exceções, não têm nenhum interesse em ajudar o povo. E ninguém quer mais ouvir conversa de político porque sabe, por experiência, que dar ouvidos a candidatos é pura perda de tempo.Não devia ser assim, naturalmente, mas é. A população é constantemente instada a vigiar seus parlamentares, a cobrar posições de seus vereadores, a ficar de olho no que fazem os seus representantes. Ora, pobre população! Ela já se dá por muito satisfeita quando consegue se defender do que lhe armam os que deveriam agir em seu interesse. Quando afinal perde a paciência e solta o verbo, reclama no vazio. Suas palavras não encontram eco em canto algum, salvo, eventualmente, no jornal -- mas o mundo gira, a Lusitana roda e, no dia seguinte, as notícias são outras.
A política, esta nobre atividade humana, que numa das acepções do ?Aurélio? é definida como a ?arte de bem governar os povos?, anda tão desmoralizada aqui no Rio que chamar alguém de político é ofensa grave. Ainda assim, desejo, de coração, toda a sorte aos candidatos bem-intencionados, sejam eles meus amigos ou não, pois só através deles sairemos do atoleiro em que chafurda a cidade. Para que alguma coisa de fato mude, porém, eles vão precisar de mais do que boa sorte.
Eles vão precisar, como nós precisamos, de um sistema em que o poder não seja uma simples moeda de troca; eles vão precisar, como nós precisamos, de um governo saneado, sem corruptos, demagogos ou diminutivos, em que a gente possa escolher candidatos por gostar deles, e não por ter engulhos ao olhar para os outros. Caso contrário, acabarão tragados pela escumalha, como tantos antes deles.
Não, não se pode culpar a população carioca por estar indiferente. Ela enterrou a última utopia logo ali, ao lado da última quimera, nas eleições de 2002.
(O Globo, Segundo Caderno, 30.9.04)
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