6.9.04



O caso do filtro solar,
precursor de confusões

"Senhoras e senhores da turma de 1997", dizia o discurso de Kurt Vonnegut no MIT que um amigo internauta me mandou da Califórnia. "Usem filtro solar. Se eu pudesse lhes dar uma única dica em relação ao futuro, filtro solar seria esta dica. Os benefícios do uso do filtro solar a longo prazo já foram comprovados pelos cientistas, ao passo que os meus outros conselhos não têm base mais sólida do que a minha vivência mambembe.

Aproveitem a força e a beleza da sua juventude. Aliás, deixem pra lá. Vocês não conseguirão entender a força e a beleza da sua juventude até que tenham desaparecido. Mas, acreditem: dentro de 20 anos, vocês olharão para suas fotografias e se lembrarão, de uma forma que nem conseguem imaginar, quantas possibilidades existiam diante de vocês, e como eram bonitos. Vocês não estão tão gordos quanto pensam.

Não se preocupem em relação ao futuro. Ou preocupem-se, mas saibam que isso adianta tanto quanto tentar resolver um problema de álgebra pulando amarelinha.

Não sejam displicentes com os corações dos outros. Não aturem pessoas que sejam displicentes com o seu. Escovem os dentes. Lembrem-se dos elogios que receberem. Esqueçam os insultos. Se conseguirem fazer isso, digam-me como se faz.

Conservem suas antigas cartas de amor. Joguem fora seus antigos extratos bancários. Sejam gentis com seus joelhos. Vocês vão sentir falta deles quando não os tiverem mais.

Aproveitem seus corpos. Usem-nos de todas as formas. Não tenham medo do que outros possam pensar deles. O corpo é o melhor instrumento que jamais terão.

Não leiam revistas de beleza. Elas apenas os farão sentir-se feios.

Conheçam seus pais. Nunca se sabe quando eles partirão para sempre. Sejam gentis com seus irmãos. Eles são seu melhor vínculo com o passado e, com grande probabilidade, as pessoas com quem mais poderão contar no futuro.

Compreendam que os amigos vão e vêm, mas há alguns poucos, preciosos, aos quais devem se agarrar. Façam o possível e o impossível para vencer os espaços na geografia e na vida, porque quanto mais velhos ficarem, mais precisarão de gente que os tenha conhecido quando jovens.

Aceitem algumas verdades insofismáveis. Preços sobem. Políticos prevaricam. Vocês também ficarão velhos. E, quando ficarem, terão a ilusão de que, quando eram jovens, os preços eram razoáveis, os políticos honestos e os jovens respeitavam os mais velhos.

Respeitem os mais velhos.

Não façam besteira demais com seu cabelo, ou quando chegarem aos 40, ele estará com cara de 85. Tomem cuidado com os conselhos que aceitam, mas sejam pacientes com quem os dá. Aconselhar é uma forma de nostalgia. É um jeito de pescar o passado do lixo, limpá-lo, repintar as partes feias e reciclá-lo, para que pareça valer mais do que vale.

Ainda assim, confiem em mim quanto ao protetor solar."

Maravilhoso, não? Sinto informar, porém, que Kurt Vonnegut jamais fez qualquer discurso no MIT. Esse texto, que corre pela internet há algumas semanas, foi escrito, de acordo com o "Chicago Tribune" de ontem, pela colunista Mary Schmich, e é a mais recente lenda urbana da rede.

Entende-se. Será que alguém que recebe uma msg recomendando a leitura de uma ótima coluna de Mary Schmich, do "Chicago Tribune", vai se dar ao trabalho de ler? Pois é.

* * *

Publiquei o texto acima em 8 de agosto de 1997, aqui mesmo no GLOBO, numa coluna chamada "Aviso aos Navegantes". Na semana seguinte, ou seja, no dia 15, voltei ao assunto. Depois de descascar um pouco a "Time", que andava portando-se horrorosamente mal com a internet e os então relativamente poucos internautas, escrevi:

"Para mostrar como está por dentro, a "Time" manda, nas frases da semana: "Wear sunscreen, Kurt Vonnegut, at the Massachussets Institute of Technology". Ora, isso só faz sentido para quem tem e-mail e recebeu, de alguém, o tal discurso do filtro solar de que falei na semana passada. Em suma, é mais ou menos como se a revista estivesse piscando o olho para os leitores internautas, dizendo "Viram? Nós também recebemos".

Com isso comeu a mega-mosca da temporada, tanto mais injustificada porque, no dia 7 de agosto (a data de capa da "Time" é 11 de agosto), a versão on-line do "Chicago Tribune" publicara uma longa matéria pondo os pingos nos ii. Aliás, na sua coluna de 2 de agosto, no jornal propriamente dito, Mary Schmich, verdadeira autora do discurso, já havia escrito sobre o ti-ti-ti. Talvez porque, um dia antes, a versão eletrônica da "Wired" (!) saíra com alguns trechos vonnegutianos.

No site da "Time" não se fala no assunto. No do Chicago Tribune, descobre-se o que os principais envolvidos acharam da história.

-- O texto é muito esperto, mas não é esperteza minha, -- comentou Kurt Vonnegut com a autora das suas (vocês decidem) palavras. -- O ciberespaço é assustador.

-- Bom, sem dúvida é muito melhor acharem que o meu texto é do Kurt Vonnegut do que acharem que é da Danielle Steel -- observou Mary Schmich, provando que realmente sabe das coisas.

Mas quem dá mesmo um banho é a "Wired". Lá, Steve Silberman foi fundo, anteontem. Nada de mais bonito se escreveu sobre o hoax -- e, de modo geral, sobre a rede que tanto amamos e que, mais uma vez!, está levando porrada.

P.S. sobre Kurt Vonnegut: Bad news! Aos 74 anos, aposentou a verve e a cabeça aberta. Usa máquina de escrever, odeia computadores e fez declarações tão malsãs que estão sendo brandidas, agora, como Sagrada Escritura contra a rede pelos censores de plantão. Que pena que ele não é Mary Schmich.

* * *

Lembrei dessa história porque foi esta a primeira vez em que o texto de uma pessoa mais ou menos desconhecida circulou pela internet com falsa autoria. "Vonnegut" e "MIT" eram, na época, palavras mágicas para quem usava a internet; não havia como resistir ao apelo da mensagem. Mas quem já estava online na época aprendeu: não se manda adiante texto recebido por email sem ter certeza de quem escreveu.

Continua valendo.

(O Globo, Info etc., 6.9.04)

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