8.7.04



Pondo a vida em dia com Harry Potter e Vermeer



Quando a gente volta das férias, acaba esbarrando num certo descompasso de assuntos. Fiquei muito contente com as novas cadeiras da redação, por exemplo, mas, como elas já tinham chegado há duas semanas, não encontrei mais ninguém com quem compartilhar o meu entusiasmo. Uma das capivaras da Lagoa andou sumida e reapareceu, mas como eu não soube nem de uma coisa nem de outra, não pude nem me preocupar nem me regozijar quando afinal a revi ao sol, gorda e altaneira.

Na semana em que viajei, “Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban” estava por estrear. Pois agora, que vi o filme, ele já está em vias de encerrar carreira no circuito comercial, atropelado pelo sucesso do “Homem-Aranha” — e, suponho, pela péssima reputação de seus antecessores, que tirou até dos mais fanáticos harry-potteiros a vontade de acompanhar as aventuras do herói nas telas.

Ainda assim, correndo o risco de chover no molhado, aviso: apesar de continuar tudo mais ou menos igual em Hogwarts, tudo está — até que enfim! — radicalmente diferente. Para mim, os dois primeiros filmes da série, dirigidos por Chris Columbus, não passaram de ilustrações para os livros, com suas cenas burocraticamente fiéis ao texto e suas intermináveis (e chatíssimas) partidas de quadribol.

Era impossível adivinhar, através deles, o segredo do sucesso de Harry Potter.

Entreguem-se os mesmos ingredientes a um diretor de real talento, porém, e o que se vê não é apenas um grande filme, mas um dos melhores filmes de aventura dos últimos tempos, movido a imagens poderosas, ótimos achados e muito senso de humor. Que tal um perigosíssimo livro sobre monstros que rosna e sai mordendo o que encontra pela frente? Ou uma árvore perversa dada a comer alegres e inocentes passarinhos azuis?

Hogwarts, que nos episódios anteriores parecia um comercial da Disney, virou, nas mãos de Alfonso Cuarón, um castelo sombrio e vagamente sinistro; a natureza, espetacular, assumiu ares de protagonista; e, acima de tudo, as emoções dos personagens se tornaram reais o suficiente para envolver o público — ainda que este conheça a história de cor e salteado, saiba que nada de mau acontecerá a Harry e a seus amigos e, eventualmente, até reclame que esta ou aquela cena do livro tenham ficado de fora do filme.

Os jovens atores estão um pouco menos jovens e um pouco mais atores, embora Daniel Radcliffe, o Hugh Grant em miniatura que faz Harry, deixe a desejar em termos de expressão dramática. Não chega a ser grave. Quem já assistiu sabe: há grandes atores de sobra para garantir o bom andamento dos trabalhos.

Se você viu os primeiros filmes e perdeu a vontade de acompanhar Harry Potter no cinema, porém, reconsidere: este filme corresponde, enfim, ao livro que tanto amamos. Se você não viu nenhum dos filmes anteriores, odeia Harry Potter e detesta filme de aventuras, reconsidere também: este é um Grande Filme, independentemente de rótulos, gênero ou propósitos.

* * *

Num momento mais cabeça, fui assistir a “Moça com brinco de pérola”. O filme é inacreditavelmente bonito, lindíssimo de ver, um verdadeiro Vermeer em movimento — mas, sinceramente? Não me disse nada. Não encontrei qualquer densidade emocional na tela ou qualquer química entre as personagens. Alguns detalhes do livro de Tracy Chevalier, como as paradas da jovem Griet sobre a rosa dos ventos na estrada, foram incompreensivelmente respeitados; outros, como o destino dos brincos, muito mais importantes na história, foram desprezados, sabe-se lá por quê.

O pior é que nem ao menos tenho certeza de ter gostado do livro. Achei boa a invenção da empregada Griet a partir da moça anônima do quadro, e até me envolvi com o ritmo da trama, que consegue recriar o cotidiano de um tempo passado. Também gostei das incertezas que ficam no ar e que, no filme, perdem muito da sutileza, assim como Griet, narradora no papel, perde muito da personalidade, ao permanecer quase muda em cena.

Mas o romance tem problemas sérios, a começar pelo chavão da esposa neurastênica que, a despeito da longa vida em comum, é incapaz de compreender a arte do marido genial — prontamente compreendida, porém, pela empregadinha analfabeta recém-chegada à casa. Como se não bastasse, em dois tempos esta empregadinha compreensiva encontra a solução visual perfeita para um quadro em que Vermeer — Vermeer! — estava empacado há semanas. Então tá.

Frescura minha implicar com isso, eu sei: o elogio da ignorância é o que há de mais moderno. Só que eu ainda sou do tempo em que a educação tinha o seu valor, e o gênio, o seu merecimento.

(O Globo, Segundo Caderno, 8.7.2004)

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