A gata, os leitores,
o delegado e o Ribondi
Não, pessoal, a Pipoca infelizmente ainda não apareceu, nem tenho notícias dela; ainda não perdi de todo as esperanças de encontrá-la, mas confesso que, a cada dia que passa, fico mais desanimada. Se tantos humanos desaparecem mundo afora sem deixar vestígios, imaginem uma gatinha quieta e pequenina, tão parecida com tantas outras gatinhas brancas, sem importância aparente ou valor de mercado...
Por outro lado, perdi a conta das manifestações de solidariedade que recebi desde a semana passada, depois que descrevi minha ida à 14 DP para registrar o roubo da gatinha. Foi muito reconfortante saber que o sumiço de um bicho de estimação ainda comove as pessoas — tanto pelo bicho quanto pelas pessoas. Acho que há, aí, um sentimento que vai além da preocupação por um quadrúpede, coisa pouca diante das grandes tragédias que nos cercam: a consciência de que estamos todos, gente e bichos, no mesmo barco existencial, reforçada pela certeza de que, afinal, toda espécie de amor vale a pena.
Leitores telefonaram e mandaram e-mails contando casos parecidos acontecidos com animais seus; alguns até me ofereceram filhotes branquinhos iguais à Pipoca. Mas o que me surpreendeu mesmo foi a quantidade de gente que apoiou o fato de eu ter registrado queixa na polícia — o exato oposto do único leitor que, de São Paulo, resolveu soltar os bichos:
“Registrar o roubo de um gato? Será que você não acha que a polícia tem coisas mais importantes a fazer? Ou será que você é que não as tem? Prest’enção, madame!!!”
Mas a madame aqui, que achou muito curioso o uso deste “prest’enção”, folga em dizer que até a polícia se manifestou favoravelmente:
“Meu nome é Ricardo Andreiolo, sou delegado de polícia e, até a semana passada, eu era titular da delegacia especializada de atendimento ao turista, colada com a 14 DP; agora estou na França para um ano de estudos na Escola Nacional Superior de Polícia, da polícia nacional francesa. Escrevo para agradecer pelo seu último artigo, pois são raros os elogios à polícia por parte da imprensa e, como diz nosso Caetano, ‘é que um carinho às vezes cai bem’.
Na totalidade técnica das vezes, o policial é vilipendiado pelo jornalista — pois o elogio não é uma notícia espetacular, portanto não rentável; e aí, para meu desgosto (minha primeira faculdade foi jornalismo na UFRJ) fui percebendo que a voz do jornal, que costumamos associar ao interesse público, é ditada por uma lógica de otimização do lucro como em qualquer empresa multinacional.
Isto sem falar no desrespeito aos policiais por parte de promotores e juízes — e geralmente aos bons policiais, que são aqueles que agem dentro da lei e portanto vêem o resultado de seu trabalho na esfera do poder Judiciário.
Não adoto aqui uma postura corporativista: acho que o policial bandido deve mesmo ser denunciado pelo promotor, tratado com firmeza pelo juiz e denunciado ao público pelo jornalista; mas quando isto se torna sistemático, patológico, não causa efeito algum sobre os maus policiais — que estarão roubando de qualquer forma — e só faz desanimar aqueles que querem trabalhar direito.
Desta forma está sendo jogada fora uma nova geração de excelentes policiais, pois muitos agem exclusivamente por interesse público, apesar de exercerem uma profissão ingrata que ainda lhes coloca a vida em risco, e deveriam, portanto, ser tratados a pires de leite, como se fossem — justamente — gatinhos de luxo.
Quanto à Pipoca, desejo boa sorte e acredito que a investigação terá êxito, já que a placa do veículo foi anotada: o proprietário será identificado e intimado a prestar depoimento. Acredito que o crime tenha sido registrado como furto, já que a nossa legislação, infelizmente, trata os animais como objetos. Assim, matar o cachorro do vizinho é um simples crime de dano, muito menos grave do que o crime de furto: o objetivo aqui é resguardar a propriedade privada (exacerbadamente protegida pelas nossas leis), e não a vida de um gato ou de um cachorro.”
* * *
Enquanto isso, lá no blog, meu querido amigo Alexandre Ribondi disse tudo:“Uma vez, no meio de uma súbita e esquisita onda de violência aqui em Brasília, os jornais deram destaque ao nascimento de um leãozinho no zoológico. Aquilo foi como se outra onda, mais alta, e de ternura, houvesse lambido a cidade inteira. Eu abri o jornal e sorri. Deu alívio. Deu vontade de ir lá no zoológico abraçar a mãe, só para ter a sensação de que vivíamos em paz, com tempo para essas delicadezas.
Assim também é que vejo a preocupação e a consternação da Cora e dos seus amigos e leitores com a gatinha branca. Enquanto a gente achar que é definitivamente importante correr atrás de bicho sumido, essas coisas admiráveis como o carinho, o amor, o companheirismo, a amizade profunda ainda farão sentido, mesmo que o resto do mundo esteja desabando em nossa volta.
Pipoca, então, é a vontade inabalável de que tudo isso para sempre exista.
Viva Pipoca.
Onde quer que você esteja, minha menina branca e linda, estarei, eu também, pensando em você.”
(O Globo, Segundo Caderno, 22.7.04)
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