29.7.04





Polícia encontra gatinha,
mas alegria dura pouco


A Bia e eu ainda ficamos na dúvida: será que uma subia enquanto a outra esperava? Assim, se uma demorasse muito, a outra podia pedir socorro. Mas nem eu queria deixar a minha filha subir sozinha, nem ela queria que a mãe corresse riscos. Estávamos num edifício em Copacabana e, alguns andares acima, encontrava-se a Pipoca, nossa gata seqüestrada. Vivíamos os momentos finais da saga que envolveu um carro com placa de São Paulo, uma rede de mentiras, a solidariedade de leitores e amigos e uma investigação impecável dos policiais da 14ª DP.

Já no corredor, nem precisamos conferir o número do apartamento: uma sinfonia de latidos indicava nosso destino. Lá dentro, incontáveis animais, todos lindos, bem tratados e aflitos com a nossa presença e a superpopulação do espaço. Trocamos algumas palavras com o senhor que nos recebeu, não fizemos as perguntas que nos afligiram ao longo de 20 dias nem as acusações que estavam entaladas na garganta; apenas recebemos a Pipoca, assustada mas aparentemente bem, e voltamos para casa em triunfo, no auge da alegria.

No nosso prédio, onde vive entre o jardim, a garagem e a casa do porteiro Zé, a gatinha foi recebida com grande emoção. Os vizinhos festejaram, todos autenticamente maravilhados com a eficiência da polícia. Depois de percorrer seu território, miando muito — com certeza queria nos contar o que lhe aconteceu no cativeiro — Pipoca foi para o jardim, onde, como de hábito, ficou se lambendo ao sol: uma luz no fim do túnel, um pequeno milagre.

Na segunda-feira, quando ganhou notinha no Ancelmo Gois com direito a foto, viveu um dia de celebridade: pessoas que moram nas redondezas vieram vê-la, felizes e empolgadas com a história que, enfim, acabou tão bem. No blog, no fotolog e na minha mailbox, a comemoração foi sensacional: pouca gente acreditava que a polícia fosse capaz, ou tivesse vontade, de encontrar uma gatinha sumida. Percebi que, para a maioria, descobrir a cortesia e a eficiência dos inspetores Luiz Prates e Marcelo Cupello foi tão animador quanto saber que a Pipoca estava de volta ao lar.

A felicidade tem disso: gera ondas que vão e vêm. Os leitores que acompanharam a história que contei no blog, em capítulos, no fim da noite, foram dormir alegres, de alma lavada. Imprimi algumas das suas mensagens para ler na cama, acrescentando ao alívio de ter a Pipoca de volta a onda de solidariedade e ternura que se formou em torno dela. Como isso faz bem, pensei, antes de apagar a luz.

* * *

No dia seguinte, de tarde, soube da notícia terrível: Fernando Villela, jornalista, 30 anos, havia sido morto com um tiro no coração, ao reagir a uma tentativa de assalto. Não éramos próximos, no sentido tradicional que se dá à palavra, mas éramos, sim, muito próximos — à nossa maneira internauta de ser.

Fervil, como sempre o chamei e como para sempre ficará no meu carinho, foi um dos pioneiros da informação online. Trocávamos emails e comentários há anos; ele tinha um talento especial para saber qual seria a próxima onda, o que estava no ar, o que era interessante — tanto que, neste momento, trabalhava desenvolvendo conteúdo para telefones celulares. Não à toa, volta e meia alguém o chamava de Fervilhante: não era trocadilho, apenas constatação.

O fato de pouco nos vermos na vida real não impedia que nos considerássemos bons amigos, velhos camaradas, companheiros de estrada. Fiquei de coração partido ao ver no jornal a foto do seu pai, sentado no meio-fio ao lado do filho morto; naquele momento, o que havia de virtual na minha relação com o Fervil adquiriu uma realidade insuportavelmente dolorosa, superada apenas pela revolta de saber o quão banal está se tornando esta cena na minha cidade, na nossa cidade, abandonada ao desgoverno mais cínico e incompetente. A cidade que tanto amamos, mas que não nos permite mais o gozo singelo de 24 horas de plena felicidade.

* * *

Penso na equipe da 14ª DP, que tão bem me tratou e que com tanto empenho se dedicou a investigar o desaparecimento da gatinha; penso nos profissionais corretos e humanos que conheci, que vibraram com o final feliz da nossa epopéia felina, e penso como não devem se sentir frustrados com o descaso que se dá à segurança no Rio de Janeiro.

Afinal, como pode se sentir um bom policial sabendo que os critérios de avaliação da sua profissão são única e exclusivamente políticos? Como pode se sentir um bom policial num estado onde a principal qualificação do secretário de Segurança para o cargo que ocupa é ser marido da governadora?

O seqüestro da Pipoca, que para as pessoas que não gostam de animais pode parecer uma bobagem, me chamou a atenção para o drama dos bons profissionais da polícia, que obviamente têm vontade de acertar mas têm tão pouco estímulo para isso; a morte trágica do Fervil, porém, me lembrou que não há luz no fim do túnel que resista ao obscurantismo em que estamos mergulhados.


(O Globo, Segundo Caderno, 29.7.04)

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