15.7.04




O dia em que fui parar na delegacia

Domingo, quase onze da noite, uma chuva danada, um frio de amargar — e lá estava eu, de capa, cachecol e guarda-chuva, feito uma inglesa, sentada diante de um investigador da 14 DP, no Leblon, registrando uma queixa. A delegacia, para minha surpresa limpa e bem iluminada, estava praticamente vazia. Na mesa ao lado, um casal aflito ligava em várias línguas para uma série de números, cancelando cartões de crédito roubados num assalto; lá do fundo vinha uma gritaria infernal, feita, como soube depois, pelas três mulheres de um dos presos. Se nós vivêssemos em tempos mais amenos, eu até diria que, com tanta baixaria do lado de fora, ele não devia estar achando a cadeia um lugar de todo ruim.

* * *

Relutei muito antes de ir à delegacia. Digamos — para dizer pouco — que aquele não é bem o meu ambiente; não sei o que fazer, o que dizer, a quem me dirigir. Tenho sempre um vago medo do que pode acontecer, não necessariamente comigo, mas ao meu redor: que cenas de sangue e terror não estarão à minha espera? Além disso, em meio à verdadeira guerra civil em que vivemos, será que ainda adianta chamar a polícia para qualquer caso que não envolva pelo menos um assassinato, meio quilo de pó e um arsenal de uso exclusivo das Forças Armadas?

* * *

Antigamente, havia uma linha de bonde que passava perto do Bairro Peixoto, onde nós morávamos. Havia também uma favela no alto da Santa Clara, quase na saída do Túnel Velho. Uma das minhas primeiras lembranças de criança é estar com a minha tia Clara neste bonde — palavra que então designava apenas um inocente meio de transporte coletivo — quando um moleque pulou no estribo, arrancou a bolsa dela e fugiu morro acima. Foi uma comoção.

Minha tia gritou “Pega ladrão!”; o bonde parou e meia dúzia de cavalheiros saltaram e partiram, céleres, atrás do malfeitor. Naqueles tempos ainda se gritava “Pega ladrão!”, ainda havia cavalheiros, e não só ainda havia bondes, como uma bolsa roubada era caso suficientemente sério para pará-los.

Pensando no incidente tantos anos depois, vejo que a maior diferença de todas, porém, é que, então, ainda era perfeitamente possível a um cidadão desarmado, mas corajoso, subir morro atrás de ladrão.

Mas, enfim: lá ficou o bonde parado nos trilhos até a volta dos cavalheiros: suados, esbaforidos e... de mãos abanando. A pequena multidão que se formara se desfez, desapontada, e o bonde retomou seu caminho. A polícia foi devidamente notificada, mas a bolsa nunca mais foi vista — ainda que, durante uns tempos, tenha sido assunto de conversa, não só lá em casa como na vizinhança inteira.

É que, naquela época, as pessoas ainda ficavam indignadas. Ninguém dizia “Que bom que foi só a bolsa!”, como se fosse uma sorte (e não é?) perder dinheiro e documentos sem ser ferido ou morto.

* * *

Pois foi esta antiga cena que me veio à mente domingo à noite, antes de ir, sozinha, à delegacia. Não importa que a polícia jamais tenha encontrado a bolsa da minha tia. O que importa é que todo mundo, naqueles tempos quase idílicos, reagiu como reagiam as pessoas ainda não anestesiadas por tantos e tantos anos de violência. O que importa é que ninguém se fingiu de morto.

* * *

Quando cheguei à 14 DP, um rapaz simpático veio ao balcão me atender.

— Olha, eu sei que este não é um tipo de ocorrência muito comum, mas vim registrar o furto de um gato.

— Perdão?

— Um gato. Quadrúpede. Uma gatinha branca, linda, que me levaram.

— E a senhora quer registrar?

— Justamente.

Se o rapaz achou que eu era maluca, foi suficientemente educado para não deixar transparecer nada. Pediu um minutinho e foi lá dentro se consultar com um superior, para saber se era possível registrar o fato de que a Pipoca, gatinha que caçava os ratos do edifício e encantava os moradores, havia sido raptada por uma mulher que dirigia um Palio escuro com placa de São Paulo.

Era possível, sim — e logo eu estava diante de um inspetor que cuidadosamente registrou o acontecido. Em menos de uma hora, saí da delegacia com a ocorrência na mão, e com a sensação de que, mesmo que a investigação não venha a dar em nada, pelo menos o rapto de uma criatura a quem quero tanto bem, e que tanta falta me faz, não terá passado em brancas nuvens.


(O Globo, Segundo Caderno, 15.7.2004)

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